Brasília tem suas asas, sim, mas elas não voam tão alto quanto as da Ilha do Governador.
Quando Eliza foi aprovada para o cargo no Aeroporto Internacional do Galeão, os pais festejaram a conquista com alegria cautelosa.
O “mas” vinha logo depois: “Mas o Rio é perigoso.” Como se o coração deles não soubesse que, no fundo, ela já tinha embarcado — com ou sem passagem comprada.
Eliza não era dessas de abrir mão da liberdade em troca de segurança fabricada. O salário não era grande, mas era dela. Tinha decidido que viveria com o que ganhava — e isso incluía o teto.
O que coube no bolso foi um quarto em cima de um bar, no alto de um morro com vista para o cotidiano duro.
O dono do bar era tricolor fanático, e amigo de Eliza, cujo o pai é tricolor, mas, ele era amigo pelo talento que tem em fazer e cultivar amigos.
Ali, entre o barulho do batuque, das panelas, dos rádios em guerra de volume e do samba das crianças, Eliza aprendeu a escutar o Rio. As casas formavam um corredor vivo, onde cada um sabia da vida do outro, mesmo sem perguntar.
A moça de Brasília, com seus modos contidos e gestos precisos, destoava, mas sorria. E o sorriso era sua primeira língua fluente.
O trabalho no aeroporto era puxado. Horas em pé, voos atrasados, turistas confusos, gente mal-humorada. Mas Eliza sorria.
Tinha nas mãos a leveza das palavras certas e, nos olhos, uma calma de quem já observou muitos pores do sol do Planalto. Mesmo cansada, vestia os tênis e ia bater bola nas quadras de um clube que parecia, aos olhos dela, inalcançável: o Iate Clube.
Lá, sem pretensão, foi convidada a treinar com alguns associados. Não demorou para que a técnica, a elegância e a garra da jovem chamassem atenção.
Era uma das únicas mulheres que frequentava as quadras. Aceitou o desafio de representar o clube em amistosos e torneios contra outros clubes.
Jogava com paixão — não por status, mas por pertencimento. Foi o tênis, esse esporte social e elegante, que começou a transformar sua geografia. A quadra virou ponte. O saque, uma afirmação. O jogo, um diálogo.
Seu jeito comunicativo, direto sem ser invasivo, empático sem ser bajulador, conquistou não só os adversários, mas os próprios colegas de clube.
Tornou-se amiga de muitos — entre eles, o filho do diretor-geral do clube, que se encantou pela forma como Eliza fazia do esporte uma linguagem universal.
Foi assim, entre raquetadas e risadas, que surgiu a oportunidade que mudaria tudo: na primeira vacância de um dos quartos do pequeno hostel que existe dentro do próprio Iate Clube, o convite veio.
Sem hesitar, Eliza fez as malas. Saía do morro — não por vergonha, mas porque o tênis, que ela tanto amava, lhe oferecia um novo caminho. Agora, sua janela dava para o mar.
De repente, o barulho do boteco virou o barulho das ondas. O cheiro de fritura foi substituído pelo sal que invade a pele. Do morro ao mar — numa travessia silenciosa, sem buzinas nem manchetes.
Hoje, Eliza vive onde muita gente sonha passar férias. O clube é quase uma cidade: academia, restaurante, quadras, marina, festas aos fins de semana. Mas ela ainda acorda cedo, veste a roupa e vai trabalhar no Galeão.
A diferença é que agora, o seu carro, o carro que ela luta para pagar está em segurança e ela olha o horizonte, o mar.
A vida é mesmo feita de dicotomias. Eliza continua trabalhando no aeroporto, mas sua moradia hoje é dentro de um clube onde representa as mulheres do tênis, jogando com orgulho e dedicação.
A vida lhe concedeu, por mérito, carisma e o poder do tênis social, um quarto dentro do hostel que existe no clube, um lugar raro e disputado. Foi a mistura do talento esportivo com a arte de fazer amigos que a tirou do quarto sobre o bar e a levou para um canto privilegiado à beira-mar.
Onde antes havia uma janela para os barracos e os gritos noturnos, há uma varanda com vista para o oceano — e o silêncio das ondas substituindo o ruído do morro.
Antes, sua realidade era dura, limitada, sem horizonte. Hoje, ela vive com dignidade, cercada de beleza e possibilidades. E tudo isso sem nunca deixar de ser fiel a si mesma.
Essa crônica não é sobre vitória. É sobre movimento. Sobre quem desce do morro e sobe na vida, sem nunca esquecer de onde partiu.
Eliza hoje vive entre o cheiro do mar e o som dos aviões. E quando saca a bola, com força e graça, parece lançar ao céu tudo o que um dia disseram que ela não conseguiria.
Como uma crônica urbana, essa história se escreve todos os dias — entre voos, quadras e ondas. E segue, sem ponto final. Porque Eliza, agora, é do Rio. E o Rio, com todas as suas dores e delícias, também é dela.
Anand Rao
Editor Chefe
Cultura Alternativa