Crônica: Etapas antigas têm o seu lugar

Crônica: Etapas antigas têm o seu lugar e permanecerão lá, e novas têm o seu lugar e permanecerão cá

Crônica: Etapas antigas têm o seu lugar e permanecerão lá, e novas têm o seu lugar e permanecerão cá

Dentro de cada ser, há uma sala oculta onde repousam lembranças que desafiam o tempo. Não se trata de paredes ou janelas, mas de aromas, risos, trilhas sonoras de uma existência vivida com intensidade.

É ali que mora o avô com seu café fervido na chaleira esmaltada, o sorriso largo da mãe que iluminava os corredores da casa, os passos apressados no assoalho da madrugada.

A infância, os primeiros descompassos do coração, os tropeços que ensinaram mais que qualquer acerto — todos vivem nesse santuário. Etapas que não suplicam retorno. Apenas reverência.

Esses fragmentos do ontem não querem disputar terreno com o agora. Eles ocupam o espaço que lhes pertence: o recanto sereno da essência. Permanecem quietos, como fotografias amareladas que ainda emocionam. Tentar revivê-los seria romper com a natureza das horas.

A grandeza da recordação está justamente naquilo que não se repete, mas que ressurge sem aviso — no perfume de bolo recém-assado, na luz de fim de tarde que atravessa a persiana, num nome antigo que salta de uma conversa despretensiosa.

Crônica – Etapas antigas têm o seu lugar

Crônica – Resort das Mudanças: Onde o Encanto foi Substituído pelo Capital

Enquanto isso, o presente pulsa com a urgência dos dias férteis. É no agora que os rumos se desenham: entre o que deixamos de ser e aquilo que ainda nos cabe construir.

O amanhã não mora longe — ele começa na decisão corajosa, na palavra delicada, no passo ousado dado mesmo com o coração hesitante. Cada ação cotidiana é um alicerce invisível de futuros possíveis.

Muitos se perdem no saudosismo, como se o esplendor estivesse trancado nas gavetas do passado. Outros se lançam ao depois com tanta voracidade que negligenciam o instante. O equilíbrio nasce da percepção: o que foi vivência se tornou raiz, o que será ainda é semente — e é o presente que rega e cultiva.

Algumas saudades não machucam — adoçam. Lembrar da rua onde se aprendeu a pedalar ou do cheiro da cantina da escola não imobiliza. Pelo contrário, são memórias que impulsionam, que sussurram: “se você chegou até aqui, é porque resistiu”. O vivido é testemunho da capacidade de seguir.

E há também as cenas que ainda não ganharam forma — refeições compartilhadas com novos afetos, composições que ainda dormem nos dedos, travessias que sequer foram imaginadas. Essas experiências pedem passagem. Mas não gritam. Esperam por atitudes consistentes para tomarem corpo. Toda iniciativa no presente é uma mensagem enviada ao destino.

As novas etapas chegam sem cerimônia. Trazem ritmos inesperados, silêncios diversos. São feitas de aprendizados que ainda não foram nomeados. Exigem escuta, coragem fresca, disposição para o inusitado. E, ao mesmo tempo, oferecem possibilidades: recomeçar com dignidade, sem apagar nenhuma linha do que já foi escrito.

Não é uma competição de épocas. O pretérito teve seu valor; o porvir trará seus próprios encantos. Cada ciclo carrega sua assinatura e merece atenção. As fases anteriores sustentam como raízes profundas. As vindouras nos desafiam como galhos em direção ao desconhecido. O momento presente é o tronco que sustenta toda travessia.

A vida é esse entrelaçar contínuo entre o que nos esculpiu e o que ainda pode nos remodelar. As memórias não pedem espaço — são sombras que nos acompanham. Os planos futuros não impõem pressa — apenas esperam vigilância.

Quando aceitamos que cada etapa possui sua morada legítima, deixamos de arrastar o que passou e de antecipar em excesso o que está por vir. Passamos a habitar o tempo com leveza. E, assim, com os pés no solo do agora, damos sentido às páginas já preenchidas e às que ainda serão desenhadas com coragem e delicadeza.

As fases encerradas têm seu relicário na alma. As vindouras, seu altar no horizonte. Uma não anula a outra. Apenas se alternam no palco da vida, enquanto a sinfonia do tempo continua — com compassos de saudade, acordes de esperança e um ritmo que só a maturidade consegue compreender.

Anand Rao

Editor Chefe

Cultura Alternativa