A última edição do estudo Retratos da Leitura, de 2012, revelou que o brasileiro lê apenas quatro livros por ano — e dos quatro, chega ao fim de apenas dois.
Este cenário, contudo, pode estar mudando: os primeiros resultados do Vale Cultura mostraram que, entre janeiro e junho de 2014, dos R$ 13,65 milhões consumidos pelos portadores dos mais de 215 mil cartões do programa, 88,01% (aproximadamente R$ 12 milhões) foram destinados à aquisição de livros, jornais e revistas.
Para que o brasileiro leia cada vez mais — sobretudo literatura produzida no País — o Brasil Post fez uma lista dos 15 melhores romances brasileiros publicados nos 15 primeiros anos do século 21.
A seleção foi feita com base em premiações e na escolha do editor do portal.
Eles não estão em ordem alguma — e certamente não são os únicos romances que merecem ser lidos.
Tome a lista como uma bússola da produção literária neste século e boa viagem!
Cinzas do Norte’, de Milton Hatoum
Por seis anos (2005 a 2011), Ruffato assumiu um projeto ambicioso: transformar em ficção a história da classe operária brasileira do século 20. “Inferno Provisório” é o nome de tal projeto, composto por cinco obras. “Vista Parcial da Noite” é a terceira deles e narra a vida de uma comunidade de imigrantes italianos no interior de Minas Gerais. Ao contrário dos livros que o precederam e que tinham o objetivo de expandir o cenário dos trabalhadores, “Vista Parcial da Noite” é mais introspectivo e perpassa a intimidade dos personagens, trazendo à superfície segredos familiares e conflitos sociais que desembocam em violência e degradação de caráter.
A literatura de Marçal Aquino parece terra na boca. Esta é a impressão que se tem ao ler “Eu Receberia as Piores Notícias…”. No interior do Pará, o fotógrafo Cauby amarga a vida com memórias de Lavínia, uma bela e misteriosa mulher casada com um pastor. O romance, contudo, não encontra hostilidade apenas no marido traído; aquela cidade, palco da corrida do ouro, é um lugar hostil onde crimes acontecem e Deus sequer vê.
Neste começo de século, poucas obras encontram a mesma unanimidade de “O Filho Eterno”: em 2008, ele arrebatou o Prêmio Jabuti, o Prêmio Portugal Telecom e o Prêmio São Paulo de Literatura. A unanimidade tem respaldo: “O Filho Eterno” é um belo e ácido romance autobiográfico sobre a relação de Cristovão Tezza com o filho com Síndrome de Down. Na obra, o autor escancara as dificuldades (que, por menores que sejam, são imensas devido à condição do filho) e as pequenas vitórias (igualmente imensas) no cotidiano.
Há um abismo que separa Murilo Filho, cronista esportivo que testemunhou os anos de ouro do futebol, e seu filho Murilo Neto, que se ocupa de revisar livros de autoajuda. Há mais de 20 anos, eles não se falam direito. Agora, Murilo Filho descobre que tem uma grave doença e os dias contados, e busca se reaproximar do filho. Os encontros são assombrados pela estranheza entre ambos e por histórias de craques do passado — em especial Peralvo, jogador excepcional que poderia ter sido maior que Pelé. Um grande livro.
Cinquenta anos não bastaram para fechar as feridas do golpe de 1964 e a ditadura militar que nascia em 31 de março daquele ano. É por isso que “K.” é tão atual. O romance narra a história angustiante de um pai que busca pela filha desaparecida no período. Apesar de ser ficção, Kucinski reconstrói em cada parágrafo o horror daqueles tempos e o clima de incertezas, usando como gancho a dor de um pai que não sabe se a filha ainda está viva.
Numa cidade do interior do Rio de Janeiro, Paulo e Eduardo, crianças com 12 anos de idade, encontram o corpo mutilado de uma mulher. A denúncia do cadáver é tratada com desdém pelas autoridades, e os meninos não engolem a versão oficial. Os dois, com a ajuda do velho Ubiratan, passam a investigar o caso. No processo, tropeçam em retratos de violência sexual, preconceitos e alianças políticas degradantes.
É com maestria na linguagem que Veronica Stigger narra a história de Opalka, um polonês com uns 60 anos que descobre ter um filho no Brasil. Natanael, o filho, escreve ao pai no momento em que está moribundo num hospital na Amazônia. Ele diz que desenha conhecê-lo e, junto à missiva, vai a passagem. Opalka toma trem e navio para ver o filho; no caminho, encontra Bopp, um brasileiro que faz turismo na Europa e resolve acompanhar o polonês. A história se passa da década de 1930, véspera da guerra, um momento que tem forte influência nos acontecimentos.
No fim da década de 1930, enquanto retornava à civilização depois de um período vivendo em uma aldeia indígena, o antropólogo norte-americano Buell Quain se suicidou de forma brutal. Apesar das interrogações, o caso foi esquecido por anos. No começo deste século, o caso ganha uma nota de jornal, que aguça a curiosidade do narrador de “Nove Noites”. Ele passa a investigar a morte e sua história pessoal se emaranha na do antropólogo. Uma obra incrível que demonstra a habilidade narrativa de Bernardo Carvalho.
O carioca Alberto Mussa é um dos mais inventivos escritores do nosso tempo. Dono de uma excepcional habilidade de transformar lances surreais em algo cotidiano, em “O Movimento Pendular”, o autor propõe uma teoria universal do triângulo amoroso. Algumas premissas originais são consideradas — o narrador, por exemplo, acredita que um triângulo amoroso pré-histórico originou todas as demais relações do gênero. Com isso, por meio da ficção, Mussa leva o leitor a uma investigação pessoal sobre as razões de amar.
Para algumas famílias, verdades dolorosas acabam debaixo do tapete. Finge-se que a sujeira não existe. Assim é a vida de Maria Inês e Clarice, duas irmãs que moram numa fazendo no interior do Rio de Janeiro. Na obra “Sinfonia em Branco”, as duas mulheres contam com a memória para compreender os vazios do passado, os silêncios que marcaram a vida, a violência calada. Eventos cotidianos adquirem intensidade única e grande carga de lirismo na escrita de Adriana Lisboa.
Esta é uma obra que merece destaque pelo seu tom intimista. A narradora recebe do avô uma chave muito antiga, da casa onde morou na cidade turca de Esmirna, antes de ser expulso do país e vir para o Brasil. Mais do que uma chave, aquilo era um convite para uma viagem que não poderia ser contada pela geografia: trata-se do regresso ao passado, do retorno a si própria, a este ser que ama violentamente — com um quê de sadomasoquismo —, que sofre pela morte da mãe, que busca conhecer a si mesma.
Em muitas passagens, a Bíblia poderia ser uma novela de TV. Por exemplo, o capítulo 38 do livro Gênesis trata do patriarca Judá e de seus filhos Er, Onan e Shelá: todos eles se envolveram com a bela Tamar. Este é o ponto de partida de ‘Manual da Paixão Solitária’, que trata de um grupo de especialistas que estudam esta passagem bíblica durante um congresso. Apesar de jazer no Velho Testamento, o evento de Judá e de seus filhos com Tamar respinga nos dias de hoje, posto que a condição humana é única e todos temos paixões irrefreáveis que sempre brigam com nossos preceitos morais.
De certa forma, este romance é uma homenagem aos ficcionistas de outros tempos. Aqueles que criaram histórias magníficas que o tempo não apaga, como “As Mil e Uma Noites”. A escritora revisita Xerazade, mulher sedutora e inteligente que narrava aventuras fantásticas para entreter o califa e salvar sua própria vida e a de muitos outros. Se a História legou à humanidade “As Mil e Uma Noites” sem dar o devido destaque à mulher que as narrou, Piñon paga esta dívida histórica ao jogar luz em Xerazade. A autora se apropria de uma lenda tradicional dos persas (e, por este motivo, sacralizada pelo tempo) e, sem cerimônia, cria uma outra história, centrada na personagem feminina.
Rodolfo Viana, no Brasil Post