Resenha Livro Homo tempus por Anthonio Delbon
A imaginação do desastre, conceito utilizado por Henry James, é um prato cheio para amantes de distopias, ficções científicas e fantasias de caráter provocativo.
Homo Tempus, do brasileiro F.E.Jacob, é um belíssimo e acessível livro de estreia que abraça esse exercício imaginativo para retratar o otimismo ridículo do mundo atual, levando o leitor em uma verdadeira aventura cinematográfica. E o melhor: sem perder o apelo filosófico que caracteriza as grandes obras do gênero.
Em tempos onde a distopia reinante é a própria proliferação de distopias nas livrarias, o mínimo que se pede é prudência – ao escritor e ao leitor. Clichês pra lá de gastos, tramas frágeis, provocações repetidas, tudo soa como lugar comum em um gênero que teve na trinca 1984, Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451 um material que permanece inesgotável. Soma-se a isso as tantas séries televisivas, uma mais premiada que a outra, e o que surge, de início, é uma dificuldade para sair das críticas comuns geralmente suscitadas.
Felizmente, o mineiro F.E.Jacob soube trabalhar com a devida calma para atingir um público jovem-adulto de forma certeira. Trazendo à mistura distópica viagens no tempo e, principalmente, neandertais – com recomendadas referências científicas ao final da obra, para quem se interesse como eu – conseguiu traçar um diálogo consistente entre passado, presente e futuro sem apelar ao reacionarismo barato ou às ideologias ingênuas. Seu acerto começa por focar a lente em um jovem protagonista, cheio de potencial e capaz de conversar com o público a cada virada da trama.
Wallace Vidal, bibliotecário pouco afeito às tradições e sabedorias com que tem contato em seu ambiente de trabalho, é o guia de viagens no tempo que mais simbolizam as viagens de sua própria alma. Do frágil passado neandertal ao totalitário futuro eugênico, é ele o guia do leitor que passa, em ritmo frenético, a imergir em diferentes tempos e sociedades. Lentamente, graças à sutileza do autor, começa-se a perceber que as lições de um tempo servem muito mais ao presente original do próprio protagonista – e ao nosso, por consequência.
Em escrita fluida, Jacob propõe problemas filosóficos de estofo, questionando até que ponto a crença na evolução humana, cada vez mais em voga, não acaba gerando uma latente involução moral. Aborto obrigatório, desarmamento da população, fé cega na tecnologia, leis pró-veganismo, degradação cultural, aconselhamentos sociais para criminosos…o escopo de desastres é de dar inveja aos melhores episódios de Black Mirror. Em um futuro nem tão distante, um estado seguro traz um sufocamento paradoxal. Em um passado já muito distante, uma cortante fragilidade humana – ou neandertal – faz o contraste ao guardar, no seu aparente primitivismo, uma maior sensação de liberdade repousada em sólidos laços afetivos.
No fundo, como alicerce dessa atmosfera tragicômica, aparece a gradual infantilização da sociedade via exacerbação de direitos. Descrevendo como tal sensação de liberdade foi sendo perdida em nome de um Bem aqui, um Direito acolá, o autor consegue captar a fé moderna no progresso como elemento propagador da covardia e da irresponsabilidade.
Filosoficamente, é em Edmund Burke – pai intelectual de tantos magníficos autores citados pelo escritor, como Sir Roger Scruton, Theodore Dalrymple e G.K. Chesterton – que Jacob repousa sua prosa. Referência mais do que bem-vinda em tempos onde cada um se enxerga detentor de mil direitos e zero deveres. É de Burke, o anti-Rousseau, que vem a famosa definição de contrato social como um acordo entre os vivos, os mortos e os ainda não nascidos. A antítese, portanto, do egoísmo iluminista que exorta o cidadão a se libertar do passado obscuro e a criar – via demanda de direitos – um futuro paradisíaco.
Novos direitos significam novas leis. Novas leis, para serem efetivas, implicam em aumento da burocracia, do Estado, do Judiciário. Em busca da liberdade e da afirmação do que se sente ser direito de nascença, o indivíduo amplia o poder e a opressão de um Estado sem perceber o ciclo vicioso que alimenta. Do berço ao túmulo, o brado por direitos se torna o sentido da vida supremo.
O que Jacob mostra bem, utilizando do próprio fato de seu protagonista ser um jovem da geração Z, é como o individualismo exacerbado cega o homem de sua responsabilidade. Wallace Vidal maneja livros diariamente, mas não enxerga valor neles. É ele o protótipo, pelo menos de início, do jovem desconectado com o passado e o futuro, o que o deixa relapso e indiferente ao próximo e a si mesmo.
Ora acelerando na trama, com ação de tirar o fôlego, diálogos ágeis e descrições objetivas, ora aproveitando os cenários para exercitar uma prosa quase ensaística e de vocabulário fácil, focada no poder do ressentimento e da contingência, Jacob convida o leitor a embarcar em uma intensa aventura em duplo sentido: não se decepcionará quem ler Homo Tempus com sede de uma boa e criativa ficção científica, nem se decepcionará quem busca, na diversão da fantasia, goles cavalares de provocação.
Como diz Luiz Felipe Pondé, a noção de “direito” é uma das maiores formas de burocracia para o ressentimento já inventada. Lembrarão de nós como mimados ressentidos e covardes. Jacob acrescenta uma esperançosa interrogação, sem esquecer de dissecar a natureza humana em seu âmago. E existe discussão mais atual do que a que questiona o que é ser humano?
Livro: Homo Tempus – Escritor: F.E. Jacob
Editora: Sromero
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