Você Não Dá Certo com Ninguém? Talvez o Problema Seja o Espelho
Solidão ou Prisão de Expectativas?
Por que tantos indivíduos desejam viver um romance verdadeiro, mas poucos conseguem sustentar uma convivência afetiva contínua?
Em uma análise profunda e delicada no canal Nós da Questão, o psicólogo Marcos Lacerda responde à inquietação de uma seguidora que, mesmo desfrutando de uma existência plena, continua desacompanhada. A reflexão propõe repensar o modelo de conexão que muitos cultivam.
A mulher tem 43 anos, uma filha crescida, estabilidade econômica, formação intelectual sólida e um círculo social ativo.
Gosta da própria companhia, mas se frustra com o fato de não manter vínculos amorosos. Lacerda interpreta essa dúvida como reflexo de um cenário comum: a procura pelo igual, pelo parceiro idealizado — figura muitas vezes inalcançável.
O especialista convida à introspecção. Será que, ao conquistar autonomia e uma rotina completa, essa mulher — e tantas outras pessoas — não construiu também barreiras invisíveis?
A autossuficiência, se acompanhada de inflexibilidade, pode transformar-se em um campo minado emocional. O que seria uma conquista, torna-se um labirinto afetivo.

Cuidado com o Reflexo: O Amor Não é um Clone
Lacerda utiliza uma imagem marcante: dois espelhos colocados frente a frente geram um túnel infinito. Segundo ele, é esse o efeito de buscar uma relação com alguém que seja uma cópia nossa — mesma cultura, mesmos gostos, mesma trajetória. A repetição constante empobrece a troca e elimina o frescor da descoberta.
Muitos desejam um parceiro que goste dos mesmos autores, vá aos mesmos restaurantes, pratique os mesmos esportes e compartilhe os mesmos ideais.
Mas esse excesso de critérios transforma o afeto em um processo seletivo quase inalcançável. Ao invés de criar laços, instala-se um sistema de exclusão.
Marcos sugere que o verdadeiro encantamento não mora no reflexo, mas no contraste. É na pluralidade de pensamentos, hábitos e visões de mundo que a conexão floresce com autenticidade. Relações pautadas na diversidade têm mais chance de provocar crescimento e transformação do que aquelas baseadas na repetição do “eu”.
Relações São Horizontais, Não Escadas
O psicólogo propõe abandonar a perspectiva vertical nas relações — onde um é considerado superior ou inferior ao outro — e adotar uma lógica horizontal. Nessa linha reta de convivência, o diferente não é um degrau abaixo, mas um ponto ao lado.
Quem tem menos títulos, menos vaidade ou menos poder aquisitivo pode ter mais sabedoria, mais empatia ou mais leveza.
Relacionar-se com alguém fora da nossa bolha cultural exige humildade, mas pode proporcionar experiências que ampliam horizontes. Em vez de medir o outro com a régua do nosso padrão, é necessário escutar, observar e deixar-se tocar por novas formas de ver o mundo.
Estamos todos em jornadas singulares, lembra Lacerda. E talvez justamente quem escapa do molde traga as surpresas mais cativantes. Não se trata de baixar o sarrafo, mas de enxergar valor em nuances que antes passavam despercebidas. O amor verdadeiro, afinal, acolhe imperfeições.
Você não dá Certo com ninguém?
Quando o Excesso de Critério Se Torna Jaula
O desejo de encontrar alguém “adequado” pode acabar limitando o afeto. A tentativa de filtrar companhias por exigências rigorosas — aparência física, repertório cultural, rotina de alimentação — gera afastamento, e não afinidade. A seletividade excessiva não protege: ela isola.
O que começa como preferência legítima se transforma em prisão emocional. Em vez de avaliar o outro com sensibilidade, aplicam-se padrões inalcançáveis, como se o relacionamento fosse uma planilha de compatibilidade. O romance vira uma equação que não fecha, porque ignora o fator mais importante: o mistério do encontro humano.
Segundo o psicólogo, essa rigidez está deixando as pessoas cada vez mais sós. A pureza de critérios virou armadilha. Ao esperar perfeição em tudo, esquecemos de saborear o imperfeito, o espontâneo, o surpreendente. E a consequência é o vazio afetivo, recheado de filtros, mas sem presença.
Do Luxo ao Pagode: Onde Está a Verdade?
Em um relato pessoal, Lacerda compartilha uma experiência simbólica. Foi convidado para uma festa luxuosa, com música refinada, trajes impecáveis e atmosfera sofisticada. No entanto, sentiu-se entediado. Um amigo o chamou para sair dali e ir a um pagode. Ele aceitou — e se divertiu como há tempos não acontecia.
A história ilustra como nos prendemos a contextos considerados “elevados”, mas que nem sempre têm alma. A espontaneidade, muitas vezes, mora no que é popular, simples, acessível. Ao rejeitar ambientes fora do nosso roteiro habitual, podemos estar rejeitando também a alegria.
A lição é clara: sair do script é vital. A emoção, o riso e a conexão verdadeira acontecem onde há autenticidade — e não onde há pompa. Permitir-se viver o inesperado é abrir espaço para relações mais humanas, mais reais e muito mais intensas.
Amar é Reencontrar Partes de Si
O amor não é um espelho que nos confirma. É um campo fértil que nos reinventa. Lacerda finaliza com uma reflexão potente: relacionar-se é encontrar o que falta em nós, não reafirmar o que já sabemos. Amar é caminhar ao lado do desconhecido e descobrir-se novo a cada passo.
Quando nos abrimos para o que é diferente, tocamos em camadas que estavam adormecidas. O afeto verdadeiro provoca deslocamento, questionamento e, principalmente, transformação. O outro não é moldura: é portal. Um parceiro não deve ser espelho, mas bússola para novos mundos.
Então, em vez de perguntar “por que não dou certo com ninguém?”, talvez seja mais honesto refletir: “estou disposto a me transformar no encontro com o outro?”. A resposta, muitas vezes, está naquilo que temos evitado: a diferença que nos cura e nos completa.
Anand Rao
REDAÇÃO SITE CULTURA ALTERNATIVA