Tour du Mont Blanc de motocicleta
É a segunda viagem de motocicleta que faço pela Europa em companhia de meu filho Caio, de 17 anos.
Desta vez a rota nos leva a cruzar os Alpes, buscando alcançar os maiores picos daquela região fronteiriça da Europa. Esta viagem é uma confirmada balada motociclística do verão no continente. Cruza a França, a Itália e a Suíça, e passa por 10 cidades.
O Tour du Mont Blanc é bastante percorrido entre julho e agosto, por motivos óbvios. No inverno as temperaturas na região beiram os 10 graus negativos, tornando proibitivos os passeios em duas rodas pela região.
Nos meses do verão a temperatura média é de 20 graus, o sol é constante é só deixa de brilhar sobre as estradas mais encravadas nas profundezas dos vales. Ali sentimos o que poderia ser uma reminiscência do ameaçador frio alpino.
Tour du Mont Blanc de motocicleta
Partimos de Annecy, na região do Rhône-Alpes francês. A cidade é conhecida como a “Veneza dos Alpes”, pela quantidade de pequenos canais que a entrecortam. É ali que montamos na SWM Gran Milano 440 cc, alugada a 86 euros a diária. Escolho esta Roadster relançada pela fábrica italiana na França pelo seu visual e estruturas neo-retrô. O banco inteiro e achatado dará mais conforto ao meu co-piloto.
É uma motocicleta rude, mas ágil, concebida para pequenas rotas, como as que vamos enfrentar. O motor responde muito bem às reduzidas, recurso do qual terei de abusar ao longo dos 450 kms de subidas e descidas do passeio.
Vamos de Annecy a Albertville, onde foram realizados os jogos de inverno de 1992. É a partir dali que a estrada começa a serpentear colina acima e passamos a avistar mais de perto os primeiros cumes elevados cobertos de neve. A pequena, ensolarada e bonitinha (mignon, diriam os franceses) Beaufort é a escolhida para o pit stop do almoço. Ali, a todo momento, casais de meia idade estacionam grandes motocicletas em frente aos restaurantes, abancam-se em mesinhas sobre a calçada e começam a relaxar da viagem bebendo um taça de vinho.
Eu e o Caio preferimos água e vamos de coxa de pato ao vinagre de framboesa. Bem leve, pois estabelecemos o prazo de um dia e meio para chegar a Chamonix Mont Blanc, a cereja do bolo desta viagem. Assim, não queremos perder muito tempo com a digestão.
Dali seguimos para Bourg-Saint-Maurice. Rodamos aproximadamente 15 kms, subindo cerca de 900 metros, e nos deparamos após uma curva à esquerda com o belíssimo Lago de Roselend, cujo espelho d´água azul turquesa é convite a gastar alguns minutos por ali tirando fotos. Em Bourg, temos a oportunidade de alcançar o primeiro dos picos deste roteiro, o pequeno San Bernard, a 2.188 metros de altitude. Lá no alto cruzamos por vários cardumes de ciclistas e de trakkers, uma constante até o fim da viagem.
É hora de descer novamente a montanha. A descida é o momento que mais exige fisicamente de mim, pois o tanque anguloso da SWM tem uma elevação frontal que se torna bem inconveniente nas freadas em declive (é grande o risco de o piloto espremer o saco contra essa elevação). Para o carona, como o Caio descobriu tarde, o risco é queimar as pernas no escapamento duplo em ascendente.
Bilíngue
Já estamos próximos de nossa primeira fronteira a ser atravessada. Passamos ao lado de uma pequena placa da comunidade européia demarcando o território dos dois países e a Departamental francesa 1090 vira a Estrada Estatal italiana 26.
As boas condições para rodagem não mudam, as grandes cadeias montanhosas nos instigam a acelerar rumo à primeira cidade escondida atrás delas neste novo país. Ela se chama La Thuile, já no Vale de Aosta. A pequena comunidade tem cerca de 800 habitantes e é cortada por um belíssimo rio pedregoso. No inverno é uma base de ski, no verão as famílias a procuram para passear e tomar sorvete.
Deixamos La Thuile, rodamos em direção a Saint-Pierre e os famosos castelos da região começam a aparecer às margens da estrada. São dezenas deles testemunhando o rico passado feudal desta região. Notamos que sinalização e indicações turísticas continuam a ser escritas em francês.
Também escutamos o idioma do país vizinho ser falado nas ruas e ficamos mais à vontade, pois não dominamos o italiano. Tudo isso, mais a organização e a limpeza das cidades nos deixa com a sensação de que o Vale de Aosta é um pedaço da França dentro da Itália.
A partir de Saint Pierre, notamos que o céu começa a ser tomado por nuvens escuras. Decidimos descer da montanha e pegar a Auto Estrada 25 para chegar a Aosta antes da chuva. Aproveito para forçar o motor da SWM em alta velocidade e ele responde bem. Escapamos por minutos da chuva e olhamos ela cair pesada sobre uma rua do centro da cidade enquanto bebemos sob a marquise de um café.
Aosta é a principal cidade do vale. De fundação romana, destaca-se da vizinhança por ter belas ruínas daquele tempo, como o Arco de Augusto, o conservadíssimo Portão de Pretória e um fórum, além da magnífica catedral medieval de Santo Orso.
A chuva dá uma trégua mas deixa o asfalto molhado, e é com extrema cautela que deixamos Aosta. O plano é atingir a Suíça até o início da noite. Pegamos a estrada rumo à Saint-Rhémy-en-Bosses.
Passamos ao largo deste vilarejo e já começamos a enxergar à nossa direita, lá em cima, o pico do grande San Bernard, com seus 2.473 metros de altitude.
Ele já está em território suíço. Bonaparte cruzou por aqui em 1800 comandando 40 mil homens na campanha da Itália (o feito está imortalizado por David no quadro O primeiro consul atravessando os alpes no pico do Grand San Bernard).
Estamos contentes por atingir o terceiro maior pico dos alpes suíços. Admiramos a neve abraçada sobre seu cume, Caio faz algumas fotos e percebemos que começa a ficar frio. Quando entramos em território suíço a temperatura beira os oito graus.
Agora é pela Estrada do Grand San Bernard que rodamos. Notamos uma melhora na qualidade do asfalto e avistamos acima de nossas cabeças as imensas galerias do túnel San Bernard, pelo qual vamos cruzar para chegar a Martigny.
Rodar pelo complexo do túnel inaugurado em 1964 para ser o primeiro a permitir uma travessia trans-alpina durante todo o ano foi uma experiência única. Tanto na entrada quanto na saída, há seis quilômetros de galerias (uma via coberta de concreto, com a lateral que dá para o imenso desfiladeiro dos Alpes aberta).
Sopra um vento muito forte e temos medo de ser derrubados por uma rajada mais violenta. O túnel tem outros seis quilômetros, é muito bem iluminado e sinalizado, porém a sensação térmica dentro dele é francamente desagradável (custa 26 euros a travessia).
Chegamos do outro lado do complexo sentindo muito frio, e para piorar cai uma chuva fina nas proximidades de Martigny. Estacionamos a motocicleta na frente do primeiro restaurante que avistamos. Um suíço simpático elogia o desenho de nossos capacetes e nos prepara um chocolate quente inesquecível. Ele parece acostumado a receber motociclistas maltratados pelo clima inóspito do túnel.
Vamos dormir nas proximidades de Martigny, a segunda maior cidade do Canton du Valais, como chamam esta região da Suíça. Originalmente celta, depois dominada pelos romanos conserva igualmente alguns monumentos interessantes do período, como um pequeno anfiteatro, erguido no século II, e o santuário de culto à divindade Mithra.
Outro monumento arquitetônico que chama a atenção é a torre do castelo de Batiaz, que fica encravado numa montanha e é visível da estrada.
Percebemos que os suíços gostam muito de túneis como solução para encurtar caminhos. Nosso hotel fica encravado 15 kms encosta acima de uma montanha. Até chegar lá tivemos de atravessar mais dois túneis, além de uma imensa plantação de abricots.
Depois de um dia inteiro na estrada, estamos cansados, largamos a motocicleta e vamos nos recuperar num quarto aconchegante forrado de madeira de pinho. Caio comanda um Fondue no jantar e brindamos com vinho o fim de nosso primeiro dia da jornada rumo ao Mont Blanc.
Mistérios
Planejamos acordar bem cedo na manhã seguinte, pois teremos de encarar 60 kms de subidas e descidas até Chamonix. Deixamos Martigny por uma bela e ensolarada estrada que nos conduz montanha acima de volta à França. Nos aquecemos mas não será sempre assim nesta manhã.
Ao cruzar o rio das águas escuras, que demarca a fronteira franco-suíça, já estamos novamente com frio, pois rodamos por um vale estreito e úmido. Em Argentière, o sol volta a nos alcançar. Chamonix está a 9 kms, nos informa uma placa.
Da rua principal desta aprazível vila alpina já é possível avistar parte da majestosa cadeia do maciço do Mont Blanc, nosso objetivo nesta viagem. A face norte do conjunto de montanhas, chamada Aiguille Verte, está bem à nossa frente. Acelero ansioso para chegar mais perto.
Não seria necessário! A partir de agora, até Chamonix, a visão do maciço será uma constante. E vamos saborear esses 9 kms de estrada na companhia destas incríveis e fascinantes montanhas. O maciço do Mont Blanc é o apogeu da cadeia dos Alpes, com 4.809 metros de altitude em seu pico mais elevado, o mais alto da Europa ocidental.
Ao atingir a cidade de Chamonix, estacionar a motocicleta e circular por ali para registrar o momento culminante de nossa viagem em fotos, não há como não sentir um pouco da satisfação dos aventureiros que desde 1786, movidos por audácia e curiosidade, desafiam este gigante de granito e neve para alcançar seu pico.
Como eles, que chegaram lá no alto, também nós alcançamos aquilo a que nos propusemos até aqui, roçar os pés do Grande Mont Blanc. Admiramos boquiabertos o sky line de Chamonix procurando decifrar um pouco do mistério que tudo olhado à tão grande distância pode provocar. A montanha embevece nossas almas.
Mas somos da estrada. E com a disposição returbinada montamos outra vez na motocicleta para vencer os quase 100 kms da Route blanche que nos separam de Annecy, fim e começo deste nosso particular Tour du Mont Blanc.
Texto de Carlos Dias Lopes é músico e jornalista.