Crônica –  O Silêncio da Senhora Idosa

Crônica –  O Silêncio da Senhora Idosa

Aos 95 anos, dona Beatriz não pedia muito da vida. A rotina era simples, o corpo cansado e a mente ora perdida em lembranças doces, ora assombrada por escolhas que fizera.

A filha, Regina, era a responsável por suas finanças, sua saúde, e pela casa onde viviam. Tudo fora decidido pela própria dona Beatriz, anos atrás, quando a idade começou a cobrar seu preço.

A responsabilidade recaíra sobre Regina, porque — dizia a senhora a quem quisesse ouvir — a filha era firme, prática, organizada. Era, afinal, a pessoa que sabia tomar decisões sem o peso do coração.

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O filho, Eduardo, era diferente. Sensível, nunca fora de confiança para lidar com os assuntos frios do dinheiro ou da burocracia. Dona Beatriz, mesmo amando-o profundamente, não podia deixar sua vida nas mãos de quem via o mundo pelo prisma da emoção.

Quando o marido faleceu, dona Beatriz começou a viver com Regina, e Eduardo virou filho de outra ordem.  Eduardo, embora bondoso, simplesmente não tinha estômago para aquilo. E assim, a mãe optou pelo que considerava sensato. Uma escolha “racional”, ela dizia.

Regina administrava as contas, as consultas e o cotidiano da mãe como quem organiza um inventário. Cada papel em seu devido lugar, cada decisão monetária feita com um pragmatismo à prova de sentimentos. Eduardo era diferente. Quando visitava a mãe, trazia flores, doces e carinho, mas também trazia perguntas que nunca eram feitas, e respostas que nunca eram dadas.

Em cada visita, o coração de Eduardo se apertava ao ver dona Beatriz sentada no canto da mesa. O silêncio dela preenchia todo o espaço, um silêncio que parecia mais pesado do que nunca. Os olhos, um dia tão vibrantes e curiosos, agora apenas observavam os detalhes ao redor, como quem busca algo que perdeu mas não sabe onde. O que mais doía em Eduardo era que o silêncio da mãe não era apenas reflexo do tempo ou do cansaço da idade. Era um silêncio que tinha peso de decisões e escolha — a escolha de se resignar ao comando da filha.

A mesa de jantar tornava-se o palco de uma peça triste. Dona Beatriz observava Regina distribuir as ordens para os cuidadores, repassar as contas e definir as consultas. Regina agia com uma eficiência cortante, mas Eduardo sabia que a ética da organização de sua irmã era mais para ela mesma do que para o bem-estar da mãe.

A filha sempre tivera uma preocupação quase obsessiva pelo controle — algo que dona Beatriz via como qualidade, mas que para Eduardo era um fardo invisível.

As visitas tornaram-se cada vez mais carregadas para o filho. Ele a observava, sentado ao lado dela, tentando puxar conversa sobre coisas pequenas: o clima, as novelas, uma memória da infância.

Dona Beatriz, porém, respondia com sorrisos mornos, uma ou outra palavra, mas logo se recolhia ao próprio silêncio, olhando para o vazio. Era como se, tendo entregado tudo à filha, ela não tivesse mais energias para nada. A entrega fora completa, ao ponto de esvaziá-la da própria vontade de viver, exceto na rotina que a filha decidia por ela.

Em uma tarde de primavera, Eduardo não se conteve. Olhando para a mãe, os olhos úmidos e o peito pesado, perguntou: “Mãe, você está feliz assim?” A resposta de dona Beatriz foi um sorriso pequeno, que não alcançou os olhos, e um leve aceno de cabeça. Regina, que estava do outro lado da sala, apenas levantou os olhos dos papéis e disse com um tom firme: “Ela está bem, Edu. Fazemos tudo o que é necessário para ela.” Eduardo não insistiu, mas aquele momento ficou cravado em seu coração.

O coração sensível de Eduardo nunca deixou de buscar por uma ínfima rachadura na decisão da mãe. Ele desejava que ela visse nele algo mais, uma possibilidade de ternura e compreensão, que talvez tivesse sido preterida pela praticidade da irmã. Dona Beatriz, por sua vez, nunca voltou atrás. Talvez porque o peso da idade tornasse mudanças mais temíveis que qualquer outra coisa. Talvez porque, apesar de tudo, ela não visse alternativa melhor.

A relação de dona Beatriz com Regina era feita de silêncio e prática. Regina a cuidava com afeto, mas com competência. E dona Beatriz aceitava, por entender que, na vida, a sobrevivência não precisa de poesia — apenas de ordem e precisão. Eduardo, porém, seguia visitando, levando flores, carinho e a esperança de que, um dia, talvez a mãe lhe desse mais que o silêncio e um sorriso sem brilho. Sabia que não mudaria o passado, mas acreditava que aquele canto da mesa podia, de alguma forma, voltar a ser preenchido com as cores de antigamente.

Aos 95 anos, dona Beatriz fizera a escolha de deixar sua vida nas mãos de quem sabia lidar com os números e os prazos. Mas, no coração de Eduardo, a esperança residia no desejo de que, um dia, a mãe também escolhesse a poesia, o afeto, a sensibilidade que ele carregava. Mesmo que fosse apenas para um breve momento, uma única tarde na qual o silêncio no canto da mesa se quebrasse e os olhos de dona Beatriz voltassem a brilhar como antes.

O tempo, entretanto, não cedia a esses desejos. E dona Beatriz continuou no seu lugar, serena, resignada, um ponto em meio à organização do cotidiano materialista da filha, um silêncio que não pedia mais explicações, apenas a aceitação do que a vida fora, das escolhas feitas, e dos afetos que, de algum modo, permaneciam.

Anand Rao

Editor Chefe 

Cultura Alternativa

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