Crônica – O Homem que não dormia à noite
Há um homem que atravessava as noites sem fechar os olhos. Seu nome era Anicleto. Aos 63 anos, Anicleto já não se incomodava mais em se justificar para quem quer que fosse. Aposentado, ele vivia agora com o ritmo que a vida lhe ensinou, um compasso noturno, um bater de horas ao contrário. Enquanto o mundo adormecia, ele acordava por completo, entregue ao manto silencioso da madrugada.
Quarenta anos de trabalho na calada da noite ensinaram-lhe que o dia não era seu lugar. Durante quatro décadas, Antônio trabalhara no setor de clipping, que somente acontecia às altas horas, quando as notícias ganhavam vida com as palavras que informariam a cidade ao amanhecer. A fonte, a notícia o fizeram acostumar-se à penumbra, aos ecos dos corredores silenciosos. Ao acessar o jornal em primeira mão seu coração começava a pulsar, era a única compainha constante durante aqueles anos. E agora, aposentado, mesmo longe dos clippings oficiais, o clipping o acompanha.
O dia tinha seus apelos, é verdade. O sol entrava pela janela da cozinha pela manhã e aquecia o café que ele coava com falta de traço para a cozinha. O brilho do fim de tarde coloria os muros do quintal de tons dourados que Anicleto achava bonito. Mas a noite era sua verdadeira morada. Era na madrugada que ele se sentia mais à vontade, livre para ser quem era, com expectativas, com obrigações.
“As cidades são infernais durante o dia”, dizia a quem perguntasse. O trânsito, as buzinas, o tumulto de gente correndo para lá e para cá. Era um barulho que o incomodava de maneira visceral. Anicleto encontrava paz no silêncio, e esse silêncio só vinha quando o mundo desacelerava. A quietude da madrugada oferecia-lhe um espaço para ouvir os próprios pensamentos, como um riacho manso que ele podia seguir com calma, sem atropelos.
Havia algo de quase mágico nas madrugadas, algo que Anicleto ainda não conseguira descrever totalmente. A cidade que fervia durante o dia se tornava algo totalmente diferente à noite. Não era exatamente vazia, mas suas cores desbotavam, os sons se desmanchavam em ecos, e tudo parecia ser levado para longe por uma brisa leve que transformava o caos em ordem. Era quando a cidade dormia que ele acordava por completo.
Crônica – O Homem que não dormia à noite
Para ler
- Para ler todas as CRÔNICAS
- Crônica – O Homem ansioso ao investir dinheiro
- Crônica – O Silêncio da Senhora Idosa
Naquelas horas, Anicleto se sentava à sua mesa de madeira antiga, encostada no canto do quarto. Sobre a mesa, uma pilha de livros, algumas canetas e um caderno de folhas amareladas. Ele escrevia, ele clippava. Escrever era uma paixão que lhe acompanhava desde os tempos em que estudara jornalismo. Sempre foi jornalista e amava as palavras. Gostava de compô-las em frases que retratassem a vida que via da janela, gostava de transformar suas próprias reflexões em prosa e poesia, de observar a vida à sua volta e traduzi-la em letras.
Anicleto acreditava que o melhor dele saía nessas horas. A madrugada, sem dúvida, fazia sua criatividade florescer. Havia uma sensibilidade que nascia junto com a noite, um cuidado nas palavras que durante o dia ele não conseguia acessar. Era como se à noite ele estivesse mais conectado com seu interior, mais íntimo de suas próprias emoções e pensamentos.
Uma xícara de café quente, o abajur ligado ao lado, e sua mão se movia no ritmo das palavras que saíam. Por vezes, parava, olhava pela janela do quarto e via o mundo em repouso. A rua deserta, as luzes dos postes iluminando fracamente as calçadas, a lua, testemunha solitária de suas vigílias. Ele gostava de observar os gatos que passavam sorrateiros, donos absolutos das madrugadas. Via nisso uma certa poesia: os felinos e ele, companheiros silenciosos.
Não havia pressa. Antônio sabia que a madrugada era generosa, que lhe dava horas sem interrupção, um tempo elástico em que cada segundo podia ser alongado e aproveitado. Ele escrevia sobre o amor, sobre os pequenos gestos do cotidiano, sobre as saudades dos amigos que já não via mais, sobre a angústia de envelhecer e também sobre as alegrias simples, como sentir o cheiro de um bolo no forno ou o calor do sol em um dia de inverno.
Em uma dessas madrugadas, Anicleto escreveu sobre sua relação com a insônia. Não era algo que o afligia, ao contrário do que muitos pensavam. Sua falta de sono era um companheiro, uma presença constante, mas que não o castigava. Acordar à noite significava viver plenamente cada um daqueles momentos que a maioria deixava passar adormecida. Era nesse espaço de tempo que ele se encontrava e se entendia.
A vida diurna, para ele, era árida. Sentia-se deslocado ao sol, quando todos pareciam ter pressa e suas palavras não encontravam espaço para brotar. Quando o sol nascia, Anicleto já estava em paz, o caderno preenchido, a mente leve, o coração tranquilo. Dormia por algumas horas, não muitas, mas o suficiente. Acordava quando o movimento da cidade já se instalava por completo, tomava seu café, de novo, e lia as repercussões dos clippings e criação que fizera, com o tempo livre, aos 63 anos, ele finalmente podia aproveitar.
Os vizinhos achavam curioso o fato dele ser um homem da noite, e sempre lhe perguntavam se ele não se cansava, se não era solitário. Ele sorria e respondia que a solidão era apenas uma questão de perspectiva. Para ele, a noite estava cheia de companhia: as estrelas, a lua, as histórias que criava e os personagens que lhe faziam visita. E havia algo a mais, uma presença quase espiritual, algo que ele não conseguia explicar, mas que sentia.
Ele se conectava com o passado, lembrando-se dos tempos em que as noites eram ocupadas pelo trabalho frenético da clippagem por demanda, os colegas de ofício que compartilhavam o dia a dia e as conversas sussurradas para não acordar a cidade. Eram memórias que lhe aqueciam e que se misturavam com as novas memórias que criava agora, sozinho, na sua mesa de madeira.
E havia o futuro. Mesmo aos 63 anos, Anicleto ainda pensava no amanhã, ainda imaginava o que faria nas próximas madrugadas. Planejava textos que não escrevera, tentava novos formatos, novas ideias. A noite, para ele, era um campo aberto onde podia explorar suas próprias limitações, onde podia tentar ser quem quisesse ser.
Assim, ele vivia suas noites sem culpa e sem pesar. Se o sono não vinha, ele escrevia. Se as palavras falhavam, ele observava a lua, as garras do silêncio. O que os outros viam como uma ausência de descanso, ele via como uma presença plena de si mesmo. A madrugada era sua amiga, seu refúgio, sua fonte de inspiração.
E talvez, na próxima madrugada, quando mais uma vez o mundo se recolher, ele estará ali, sentado em sua mesa, explorando as histórias que apenas ele poderá contar, na companhia do silêncio, da lua, e de sua própria inquietude. Porque à noite, ele não dorme. Ele vive. E viver, para ele, é tudo que importa.
Editor Chefe
Cultura Alternativa