Contos e Crônicas de Anand Rao – O dominador dominado
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Um homem, dominando seu tempo, programa seu ano. Primavera, verão, outono e inverno, a sua vida será regida por viagens. Passagens compradas, vidas e o sonhos destacados em vôos e hotéis previamente marcados. Tudo caminhando sob o seu domínio, sua orientação, às claras, sem dúvidas e dívidas. Ele domina a si, quer dominar o mundo, sente-se fortalecido. Confunde travessuras e travessias que marcham diariamente na sua cabeça. Conseguiu vencer o colapso iminente de não se aposentar no ano passado e prometeu ser feliz. Prometeu para si e todos que ia viajar nove meses para comemorar sua difícil aposentadoria. Neste país onde o desrespeito às regras estabelecidas é notório, mandou emoldurar sua aposentadoria e a publicação no Diário Oficial.
Arrumou a bagagem no seu coração e com sua esposa condicionou o tempo à razão. Esteve doente, portanto, condicionou o tempo à saúde, vivendo cada minuto como se fosse o último. E queria, a qualquer custo, viajar o mundo, realizar os sonhos, inverter a ordem dos fatores, alterando o produto. Fez as contas, negociou empréstimos a juros menores, renegociou empréstimos feitos, organizou com toda a alegria sua história. De repente, o colapso. A pandemia, o holocausto nunca visto por seus olhos idosos em sua joviandade. Seu coração ficou perplexo e nunca pensou que o momento se eternizasse ano afora.
Contos e Crônicas de Anand Rao – O dominador dominado
Condicionado. Diminuiu seu “affair” pela agenda. Reestruturou seus sonhos despedaçados. E segue em frente, ouvindo notícias, perdido sobre o tempo futuro, alternando momentos bons e maus no seu coração. Um homem rarefeito pela falta de ar, não do Covid 19, mas, do seu sonho sufocado pelo que está por vir. Pela indefinição. Pela idiotia dos governantes e pela falta de sincronia de ações. Um homem que sabe que todos têm que trabalhar, mas, que sente que todos têm que se conter na distância social para voltarmos a trafegar. Um homem renascido de seus porôes, escuros e cheios de sombras, fantasmas e seres vivos.
As notícias lhe são dolorosas. Não consegue mais ver telejornais, só consegue, quando muito, ver “lives”, transmissões ao vivo nas redes. Um homem que teve sua vida destruída pela incompetência do poder público, de sistemas de saúde que deem suporte à saúde. Aviões param, lockdowns, distanciamento social, a economia e suas economias se entregam a uma nau sem rumo. Tudo e todos têm que se reinventar, inclusive ele. Seus amigos dão likes em seus atos de criatividade, ele comete atos de criação e invade os Whatsapp das pessoas, precisa viver, precisar ser, precisa soltar a sua boca que espuma a cada segundo e prevê o imprevisível a cada minuto.
Contos e Crônicas de Anand Rao – O dominador dominado
E o regime que é contra todas as suas crenças e convicções, perde, para o regime que faz para não ter que tomar injeção o resto da vida, pois, é do grupo de risco. Sua comorbidade, a diabetes que precisa de um maior controle. Médicos não se divertem, mas, enriquecem com diabéticos. Doenças silenciosas são as que mais provocam controvérsias e gastos e é fundamental ficar atento a elas. Na verdade a prisão, a falta de sabor tatuada na língua, é presente dia a dia, minuto a minuto, neste segmento da sociedade.
O homem que era um, passou a desenvolver atividades do lar. Passou a reorganizar sua casa para poder viver com tzão, fazendo com que a arquitetura seja a solução. Passou a fazer musculação, aeróbico e mobilidade. Passou a realizar trabalhos caseiros de qualquer ordem. Descobriu aos poucos que sua casa, antes apenas um local para ficar durante três ou quatro meses, agora é o local mais seguro, o local onde ficará por um ano. Então quer criar, fazer gracejos e travessura criativas, senão,pode passar por maus momentos e não quer que doença alguma recidive.
Contos e Crônicas de Anand Rao – O dominador dominado
O homem perdido em seu caos, passa de dominador a dominado e tenta viver seus minutos dominando os segundos sem pensar nas horas, dias, meses e minutos. O homem sabe que irá aprender muito este ano, sabe que só ele pode resolver os afazeres domésticos. Junto com sua esposa, que sabe lidar bem com a rotina, ele gosta sempre e sempre com atividades cotidianas e inovar. O homem as vezes não sabe o que fazer, por vezes exagera ao mexer no mesmo local várias vezes, mas, está aí, destemido e vencendo seus medos a cada minuto e segundo.
Contos, romances, poemas, canções, colagens, fotos, tudo fará parte do seu dia a dia. Ele que iria fazer coberturas jornalísticas, fotos e magias em festivais de música mundo afora, está aprisionado no seu celular considerando cada comodo da casa, sede da quarentena, um hemisfério, um estado, um mistério. E neste conto, primeiro conto, ele estréia e se reencontra, seu coração se acalma e segue, vendo uma luz no fim do túnel. Claro que fara de tudo para que essa luz não se apague. Perdeu o medo e estimula a criatividade. Um homem, não, o homem que era um no início deste conto, agora é vários e tem que administrar as vontades de todos os seus eus. A nave parte e terá estórias, contos, poemas e romances para contar.
Anand Rao
Editor do Cultura Alternativa