CONVERSANDO NUM BAR, AS SAUDADES DOS AVIÕES DA PANAIR…
Parece que a juventude brasileira, hoje em dia, não tem a menor ideia dos acontecimentos do passado político da nação. Será porque não tem conseguido estudar todo esse assunto nas escolas?
Será que a grade curricular não tem contemplado os conteúdos, com fidelidade suficiente, para mostrar a verdade dos fatos em sua totalidade, impedindo visualizar a existência de um tempo em que o Brasil teve regime ditatorial?
Ou talvez seja porque, nos dias de hoje, uma nova onda política que insinua que não houve ditadura militar no Brasil, que nada disso existiu, o que aconteceu foram apenas medidas tomadas para atender as necessidades da própria sociedade, que as pediu em suas manifestações nas ruas?
FATOS HISTÓRICOS COMPROVAM
Há 55 anos, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, uma passeata de donas de casa de classe média, foram protagonistas. Instruídas por homens da elite empresarial-militar do país, que desejavam derrubar o então presidente constitucional João Goulart, o Jango – e o derrubou –, levaram as mulheres ás ruas contra o “comunismo”.
É inegável que foi em nome dessas manifestações, que a ditadura justificou todo tipo de iniquidade e da imposição do governo militar, que sempre usou do discurso para garantir seu poder ditador, afirmando que apenas atendiam o desejo do povo por meio das reivindicações populares em prol da sociedade.
Por isso, seria necessário que uma série de ações impositivas e injustas, impostas pelo poder vigente instalado na época, determinando que o país passasse por uma repressão de 21 anos de ditadura, maculando o desenvolvimento social e tecnológico do futuro da nação, por meio de intervenções diretas contra o estado democrático de direito e dos direitos fundamentais do cidadão e da sociedade civil.
Assim, não seria diferente com as empresas brasileiras, e foi o que aconteceu no caso da Panair do Brasil S/A, por exemplo: Uma empresa em desenvolvimento, com sede no Rio de Janeiro, com sete mil funcionários e que, na época, representava o símbolo do sucesso da aviação comercial brasileira.
A Panair era a maior companhia do setor no país, comandada pelos executivos, Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen, que eram ligados politicamente a Juscelino Kubistchek e a Jango. No dia 10 de fevereiro de 1965, o governo militar, do então presidente Castelo Branco, cancelava a concessão da Panair, abrindo o caminho para a decretação da sua falência.
Em uma ação orquestrada, os militares entregavam à Varig e à Cruzeiro, empresas concorrentes da Panair, parte de seus ativos e também o direito de assumir as linhas para o exterior, antes de competência daquela empresa.
A Panair do Brasil viveu várias crises internas, incluindo greve de pilotos e a abertura de uma CPI na Câmara dos Deputados, mas foi em 1964, quando o governo também retirou as subvenções para as rotas internas da companhia, que culminou sua extinção sumária, apenas por interesses políticos e imposição arbitrária da força da ditadura no regime militar, que não considerou os balanços da empresa que apresentavam o ativo muito superior ao passivo, não possuía títulos protestados, nem havia ações de fornecedores ou de funcionários contra si, nem mesmo as dívidas com a União eram maiores que as concorrentes beneficiadas.
Uma situação insustentável, e assim como acontecia com a Panair, a TV Excelsior, também de propriedade de Simonsen, era igualmente fechada, ambas as empresas vítimas da arbitrariedade e manipulação jurídica, resultado de perseguição política ideológica.
PRESERVANDO O ESTADO DA ARTE
A canção Conversando no bar (Saudades dos aviões da Panair), música e letra de Milton Nascimento e Fernando Brandt, tem uma magistral interpretação de Elis Regina de 1974, e fala da saudade dos tempos áureos da empresa de aviação que fora vítima das injustiças da ditadura militar daquela época.
Apesar de ter sido composta dez anos após o golpe de 64, os autores ainda tiveram receio de falar da empresa e da saudade daquela era logo no título da canção, e por isso ela foi gravada apenas como Conversando no Bar. O seu título original só foi possível ser recuperado há alguns anos mais tarde, quando foi acrescentando ao seu título a parte original “Saudades dos aviões da Panair”.
Afinal, na época, era proibido demonstrar aquela “saudade” de uma empresa por eles respeitada, que em determinado momento tinha sido orgulho nacional e que fora desmontada sem explicações, por uma intervenção de militares logo nos primeiros meses do Golpe de 1964.
O poeta, para não deixar se perder, nem desfalecer no tempo essa memória, se valeu da licença poética, da história, da expressão musical, para denunciar o simbolismo arbitrário e a prepotência do poder instaurado em 1964, e deixar registrado para futuras gerações uma centelha referencial daquela que tinha sido uma das mais importantes empresas nacionais, que trazia desenvolvimento e tecnologias ao Brasil naquela época.
No ano seguinte, Milton Nascimento também gravou a linda canção no seu disco chamado Minas, de 1975, mesmo ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo), num canto do quartel do II Exército, no bairro do Paraíso, em São Paulo.
… E A VERDADE VEM A TONA!
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou e tornou público um relatório sobre as violações de direitos humanos, praticadas entre 1946 e 1988, apurandas desde sua instalação, em maio de 2012. O caso do fechamento da companhia aérea Panair do Brasil, em fevereiro de 1965, foi objeto de audiência pública e tratou da relação da sociedade civil com o regime militar, confirmou que essa empresa, líder em seu setor entre as décadas de 1940 e 1960, foi liquidada por motivos políticos e não financeiros.
No processo de liquidação da empresa contou, inclusive, com a participação de agentes da União e instituições como o Serviço Nacional de Informações (SNI), beneficiando as concorrentes visando exterminar a Panair.
O texto divulgado pela Comissão Nacional da Verdade foi um texto histórico tão necessário quanto duro e desagradável. Falava sobre as torturas e os torturadores, da ganância e de empresários ambiciosos, e de muita gente que se empenhou para matar a democracia ajudando a financiar os verdadeiros matadouros humanos construídos para calar a oposição política da época.
Mas tem também o relato sobre heróis que lutaram e não toparam fazer qualquer “negócio” para se beneficiar com situação. Os empresários que não compactuaram com aquela conspiração e defenderam a Constituição daquele golpe, foram perseguidos e punidos pelo regime militar ditatorial.
A Comissão Nacional da Verdade tem como prerrogativa o poder de se pronunciar em nome do Estado brasileiro. Então, foi nesse momento a primeira vez em que o país admite, indiretamente, porém oficialmente, a responsabilidade sobre a derrocada da companhia, pioneira nos voos transcontinentais, responsável pela construção da maior parte da infraestrutura de telecomunicações aeronáuticas e de alguns aeroportos do Brasil.
Em documentos das próprias Forças Armadas, existe a comprovação de que as acusações levantadas contra a empresa e sua administração tinham se baseado em um laudo pericial que a Justiça, ainda em plena ditadura, comprovou ser falso. A falência só pode ser suspensa, sem interferência da União, em 1995.
E, por incrível que pareça, apesar de permanecer parada por 30 anos e da brutal dilapidação do seu patrimônio, a Panair ainda dispunha de cerca de US$ 10 milhões em caixa ao encerrar o processo. Porém, perdura até hoje a proibição de operar.
Em 2019, o jornal O Globo informou que o livro “Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar”, do jornalista Daniel Leb Sasaki, será adaptado para uma série ficcional dirigida pelo cineasta Mauro Lima e desenvolvida pela empresa Spray Filmes. É importante assumir os erros do passado vivido em nossa trajetória histórica para servir de exemplo e não repetir erros que outrora foram cometidos.
A negação da história não apagará os fatos, nem os danos causados à civilização, tão pouco, os culpados do passado repassariam, por herança, a culpa das maldades e do mau-caratismo de suas posições políticas diante as atitudes impostas contra a sociedade brasileira.
Também, não se podem relegar às instituições constitucionais, as decisões que foram corrompidas pelos indivíduos ocupantes dos cargos e espaços de poder de representação, que oportunamente desconsideraram as normas formais legais em prol de suas ideologias políticas e interesses pessoais naquela na época.
A retidão dessas instituições está definida na forma da lei, aplicá-las estará sempre a cargo de quem está à frente, representando-as diante do povo.
**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha do Cultura Alternativa.
Wellington de Mello – Escritor, Redator, Publicitário, Designer Gráfico e Fotógrafo