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Crônica Filosófica – Desejo esquecer o passado, mas não consigo

Crônica Filosófica

Ela estava sentada na poltrona que já não combinava com a casa, mas que ainda acolhia seus ossos com familiaridade. 

O xale, tecido em lã azul-marinho, lembrava as mantas dos alpes suíços que ela mencionava em suas aulas de cristalografia — tempos de minerais raros e fórmulas que só ela compreendia de verdade. 

Ao lado, a cuidadora, com voz doce e diminutivos excessivos, oferecia colheradas de sopa como se alimentasse uma criança de colo. “Vamos, minha pedrinha preciosa”, dizia. E aquilo doía.

Ele, o filho, jornalista, acostumado a transformar memórias em narrativas, assistia em silêncio. Sabia lidar com histórias — as dos outros. Mas a dela era um campo sagrado. E dolorido.

Aproximou-se num domingo morno, como tantos outros. Carregava nos ombros o peso de um tempo que não queria passar.

— Mãe… posso falar com você a sós?

A cuidadora sorriu e se retirou. Era um rito já conhecido.

Sentou-se no chão, perto dos pés dela, como fazia nos tempos de infância, quando ela explicava com paixão os segredos do quartzo, do feldspato, da apatita. 

Tempos em que o mundo parecia ter um eixo fixo — o brilho dos minerais sob a luz do microscópio e o som das palavras dela preenchendo tudo.

— Eu queria… esquecer. Mas não consigo.

Ela demorou a responder. Tocou com os dedos finos a aliança antiga que ainda usava, mesmo viúva há décadas.

— Esquecer o quê, meu filho?

Ele não sabia por onde começar. O laboratório que ela comandava com pulso firme. Os congressos internacionais. 

O dia em que ela foi premiada em Viena por sua pesquisa sobre sistemas cristalinos e ele, ainda adolescente, entendeu o que significava orgulho. 

Ou o dia em que ela caiu pela primeira vez, e a mulher-catedral virou uma senhora frágil. Um ícone com os degraus ruindo.

— Esquecer que a senhora foi gigante. Que organizava estruturas como quem reescreve a ordem do mundo. Agora… olha só. Tratam a senhora como se tivesse desaprendido tudo.

Ela sorriu, e o sorriso era cheio de serenidade, não de tristeza.

— Ah, meu filho… os tempos mudaram.

A frase caiu como uma pedra na água. Um cristal atirado no lago do tempo.

Ele desviou o olhar, tentando conter a revolta. O tempo a reduzia a uma velhinha de pijama com estampa de florzinha. 

Mas para ele, ela era a mulher que decifrava a geometria secreta do planeta.

— Eu não suporto vê-la assim. Como se todo aquele legado não importasse mais.

— E importa para quem?

A pergunta o desarmou.

— Importa pra mim. Eu escrevo sobre a memória dos outros, mas a sua… não quero que seja esquecida.

Ela tocou suavemente a mão dele.

— E por que você acha que está esquecida? Só porque não dou mais aula? Porque meu nome não aparece mais em revistas científicas?

Ele silenciou.

— Tudo o que fui está aí, em você. Na forma como você escuta, investiga, escreve. Seus textos, mesmo os mais políticos, têm estrutura. 

Clareza. Rigor. Você organiza palavras como eu organizava minerais.

Ele engoliu em seco. Era verdade.

— Então por que não consigo deixar isso ir?

— Porque você quer me ver como fui. E eu sou outra agora.

Ela ergueu os olhos levemente, procurando algo no teto ou dentro de si.

— O problema não é esquecer o passado. É entender que ele se sedimenta. Vira base. Vira solo. Um cristal precisa de tempo, pressão e silêncio para se formar. E também para desaparecer.

Ele deitou a cabeça em seu colo, como há quarenta anos. E ela, com movimentos lentos, passou os dedos em seus cabelos já prateados.

— A velhice não é o oposto da grandeza. É a continuação dela. Mas com outra luz.

— Ainda assim… queria esquecer como era antes. Porque lembrar me parte em dois.

Ela suspirou.

— Não se esquece da estrutura de um cristal só porque ele se desfez. Ela está lá, invisível, orientando tudo. 

Até quando parece pó. O passado é assim. Não precisa carregar. Ele já está em você.

Lá fora, o sol escorria lentamente pelas folhas da figueira. O tempo, este escultor mudo, seguia esculpindo corpos e memórias.

E ele, jornalista das palavras e dos silêncios, percebeu que sua mãe, mesmo quieta, ainda sabia ensinar.

Anand Rao

Editor Chefe

Cultura Alternativa