Crônica Literária – O Solitário Pensador

Crônica Literária – O Solitário Pensador

O homem passara a vida inteira nos bastidores, sempre na sombra das palavras que construía para outros. 

Trabalhava para senadores, figuras públicas que dormiam enquanto ele, de olhos abertos na madrugada, resumia o Brasil, cortava o excesso, lapidava frases e transformava discursos em blocos de informações prontas para serem lidas, compreendidas, descartadas. 

E assim, noite após noite, ele habitou um universo invisível, preenchendo silenciosamente o espaço entre as palavras e os poderosos, enquanto a escuridão lá fora parecia sempre igual.

Quando finalmente se aposentou, depois de anos de rotina noturna, ele imaginou que enfim experimentaria a paz de noites dormidas, de sonhos que surgiriam naturalmente ao repousar a cabeça no travesseiro. 

Mas o sono não veio. O costume de madrugar, de ser o vigia de si mesmo enquanto o mundo dormia, enraizara-se em sua alma. 

A cama lhe parecia estranha, o travesseiro duro, e o silêncio, aquele mesmo silêncio que lhe era tão familiar, agora fazia um barulho ensurdecedor.

E foi assim, nas primeiras noites de insônia, que ele se deu conta de que a solidão também se tornara um hábito. 

Antes, ele se perdia nos resumos para senadores; agora, com as horas vazias à sua disposição, sua mente buscava novos terrenos, assuntos de outras profundezas. 

Começou, então, a escrever crônicas, fragmentos daquilo que nunca pôde dizer, dos pensamentos que se esconderam por anos nas entrelinhas dos relatórios. 

A cada madrugada, sentado na sala iluminada apenas pelo abajur, ele se via rodeado pelo silêncio, um velho amigo que, no entanto, parecia ter mudado.

O silêncio, pensava ele, é o maior dos questionadores. Não o incomodava enquanto trabalhava, mas agora, na solidão da madrugada, parecia interpelá-lo a cada linha, a cada frase. 

No fundo, o silêncio era, de certa forma, a voz de tudo aquilo que ele deixara de viver. E, diante daquela mudez absoluta, seus pensamentos se alargavam e, ao mesmo tempo, se contraíam, como uma maré de lembranças. 

Lembrava-se dos dias de juventude, dos amores que não vivera, das paixões que sacrificara no altar de uma carreira dedicada ao anonimato. 

O silêncio, esse algoz, tornava-se quase insuportável em certos momentos, como se lhe dissesse: “Agora é você quem deve falar, ninguém mais estará ao seu lado para ser o destinatário das suas palavras não ditas.”

Em algumas madrugadas, ele se emocionava, lágrimas discretas que molhavam a ponta de seus dedos enquanto escrevia. 

Outras vezes, era como se ele retornasse ao trabalho que tanto conhecia e escrevia com a frieza de quem conta apenas os fatos, sem envolvimento, sem vestígios de sua própria humanidade. 

Quando isso acontecia, sentia uma certa nostalgia. Ele se perguntava se, em algum lugar, a presença dos senadores ainda esperava por seus resumos, por sua capacidade de extrair a essência do que estava nas entrelinhas. 

Mas não havia mais senadores, não havia mais relatórios. Havia apenas ele e a madrugada.

As crônicas que surgiam tinham o gosto amargo de tudo o que ele nunca pôde compartilhar, e ele escrevia não para ser lido, mas como uma forma de diálogo com o passado, como se ao escrever sobre suas lembranças ele pudesse dar a elas um final diferente, reinventar o que não foi, criar o que não existiu. 

No entanto, a realidade era sempre implacável. Ele terminava cada crônica com a sensação de que o passado estava onde deveria estar, e que sua única companhia verdadeira era o silêncio, sempre o silêncio.

A solidão, no entanto, não era algo que ele renegava. Havia uma espécie de conforto nela, uma paz singular que ele nunca encontrara nas relações ou no tumulto do dia a dia. 

A solidão era sua conselheira, a sombra que o acolhia quando ninguém mais o fazia. Ao mesmo tempo que ela lhe trazia nostalgia e até mesmo dor, era também a única coisa que lhe restava. 

Ele sabia que, ao fim de cada madrugada, ao término de cada crônica, restaria apenas o vazio, o eco das palavras que nunca seriam lidas, das histórias que não encontrariam ouvintes.

Naquela madrugada em especial, ele sentou-se à mesa com uma xícara de café esfriando ao lado, e ficou a ouvir o silêncio. Pensou em escrever sobre a velhice, mas as palavras lhe fugiram. 

Sentiu a solidão mais aguda que nunca, mas, ao mesmo tempo, um estranho sentimento de completude. 

Ele percebeu que sua vida, seus resumos e até sua aposentadoria, tudo culminava naquela noite, naquela simples constatação: ele existia ali, inteiramente só, e o silêncio era o único testemunho de sua história.

Assim, fechou o caderno e apagou o abajur. A madrugada ainda estava longe de terminar, mas, pela primeira vez, ele achou que talvez o sono viesse. 

E, se não viesse, ele continuaria ali, ao lado do silêncio, escrevendo sobre aquilo que nunca seria dito, mas que, de certa forma, já estava dito em cada pausa, em cada linha, em cada olhar perdido na imensidão da noite.

Anand Rao

Editor Chefe

Cultura Alternativa 

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