Crônica – Resort das Mudanças
Havia um tempo em que bastava cruzar os portões de um Resort para que o visitante sentisse o coração desacelerar. Era como entrar em um outro tempo, em um outro tom.
Os recepcionistas pareciam saídos de algum livro de Gabriel García Márquez: falavam colocando a mão no coração, com emoção nos olhos, quase que sabiam o nome do hóspede sem consultar a tela fria do computador.
As camareiras deixavam bilhetes manuscritos com magias ao lado das toalhas dobradas como cisnes. O chef, mesmo nos dias corridos, vinha à mesa cumprimentar os clientes, perguntando sobre a textura do molho ou a lembrança provocada pela sobremesa.
Era um resort de experiências — não de pacotes.
Mas o mundo girou, a economia mudou de eixo, e as metas começaram a ser mais pesadas que a brisa leve da manhã no mirante do quarto andar.
Crônica – Resort das Mudanças
Com o passar dos trimestres, a diretoria foi trocada, novos investidores chegaram com planilhas, gráficos, metas trimestrais de crescimento em dois dígitos, e uma ideia implacável: o capital é o novo protagonista.
A mudança foi silenciosa no início. A simpatia virou protocolo. O sorriso, treinamento. O “boa tarde” ganhou um tom robotizado. E então veio o realinhamento total.
De encantadores, os funcionários foram reposicionados como “agentes de prospecção e retenção de clientes”. Cada colaborador passou a carregar metas, não mais no coração, mas em tablets.
Os antigos recepcionistas passaram a ter que vender upgrades, pacotes de experiências, tratamentos estéticos e passeios sob medida — mesmo que o cliente só quisesse descansar em silêncio.
Os garçons sugeriam vinhos importados com margens agressivas, mesmo que o cliente já estivesse satisfeito com uma água com gás.
O velho Resort Encanto, vamos chamar assim, virou Vale Invest Experience. A mudança na concepção não peculiar: era estratégica.
O hóspede que retornava pela quinta vez, acostumado com o “bom vê-lo de novo, senhor, reservamos seu bangalô favorito”, agora recebia um “se desejar um upgrade para a suíte diamante, temos um desconto progressivo nesta semana, senhor”. Nenhum reconhecimento, nenhuma memória. Só algoritmo.
A diretoria celebrou o crescimento de receita nos primeiros semestres. A ocupação subiu, as taxas de consumo aumentaram. Os gráficos, enfim, sorriam.
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Crônica – Resort das Mudanças
Mas as avaliações, de quem havia conhecido a concepção na origem, começou a mudar. O “atendimento acolhedor” foi sendo substituído por “vendedores de atendimento”.
A “experiência sensorial” virou “pressão para gastar”. E as flores do jardim, antes colhidas com afeto, agora murchavam sem testemunhas — ninguém mais as via.
Entre os funcionários, a transformação foi ainda mais profunda. Antes artistas do afeto, passaram a ser mensurados por planilhas, pressionados por metas, vigiados por gerentes que não aceitavam “não vender” como opção.
A voz doce da camareira virou silêncio. O chef, agora subordinado ao departamento de marketing, serve menus que combinam melhor com parcerias publicitárias do que com a estação.
Alguns resistiram. Dona Antônia, camareira há 17 anos, pediu demissão dizendo que “trabalhar com metas não combina com cuidar de gente”.
Seu bilhete de despedida foi um dos últimos manuscritos encontrados no resort. Hoje, substituída por uma equipe terceirizada, ninguém mais dobra cisnes.
No novo modelo, o capital é o hóspede VIP. E o cliente? Um potencial de receita a ser explorado. A lógica não é mais quem é você?, mas quanto você pode deixar aqui?.
Nas redes sociais, a presença digital do resort floresceu. Campanhas bem produzidas, vídeos de drone, depoimentos editados.
Mas quem passou pelo antigo Encanto do Vale e volta hoje ao Vale Invest Experiencesabe: o perfume do lugar mudou. E não foi por causa da troca dos sabonetes da suíte master.
O mundo está mesmo diferente. Os resorts, como as empresas, tentam sobreviver à selva da competição digital, dos rankings de rentabilidade, das exigências impiedosas de crescimento contínuo.
Mas talvez tenha faltado lembrar que pessoas não são apenas números. E que capital, quando sufoca o afeto, pode gerar lucro, sim — mas não legado.
Quem sabe, um dia, percebam que o verdadeiro investimento é aquele feito no coração do hóspede. Esse, sim, rende por gerações.
Editor Chefe
Cultura Alternativa