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Vozes de Ouro e Dor: A História Real dos Castrati na Música e na Corte Brasileira

Castrati – Quando a arte exigia sacrifício

Durante séculos, milhares de meninos foram submetidos à castração antes da puberdade para preservar a pureza vocal da infância.

Em nome da beleza sonora, esses jovens eram moldados fisicamente e psicologicamente para se tornarem ídolos musicais das cortes europeias — e, discretamente, também da corte brasileira.

Conhecidos como castrati, suas vozes misturavam leveza angelical com potência surpreendente, encantando reis, papas e plateias aristocráticas.

A ascensão de intérpretes sobre-humanos

Essa prática teve origem no final do século XVI, com raízes na Península Itálica. Como mulheres eram proibidas de cantar em espaços eclesiásticos, a Igreja Católica passou a utilizar meninos emasculados para preencher esse papel litúrgico.

No decorrer do século XVII, esses cantores migraram dos altares para os grandes teatros, alcançando popularidade e prestígio.

Estudos indicam que entre 4 mil e 5 mil crianças eram submetidas ao procedimento a cada ano na Itália setecentista. Muitos não sobreviviam ou não atingiam o desempenho esperado.

Mas os que conseguiam — como Farinelli (Carlo Broschi) ou Senesino (Francesco Bernardi) — tornavam-se ícones culturais, reverenciados em toda a Europa. Farinelli, por exemplo, foi contratado exclusivamente para cantar diariamente ao rei Filipe V da Espanha, em apresentações privadas.

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Corpos moldados para a perfeição sonora

A intervenção cirúrgica precoce inibia a produção hormonal, impedindo a mudança natural da voz. Assim, os castrati conservavam a leveza vocal da infância, aliada a uma capacidade pulmonar ampliada pela expansão do tórax durante o crescimento.

Essa fusão de leveza e potência gerava um timbre inimitável. O repertório desses cantores exigia agilidade, ornamentações virtuosísticas e notas agudas impressionantes. O resultado era um canto arrebatador, tecnicamente sofisticado e emocionalmente envolvente.

Fisicamente, os castrati apresentavam características peculiares: estatura elevada, feições delicadas, braços e pernas longos, ausência de pelos faciais. Muitos sofriam com enfermidades, isolamento e preconceito. Eram ao mesmo tempo idolatrados e marginalizados.

Castrati no Brasil: um capítulo pouco explorado

Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808, foi criada a Capela Real no Rio de Janeiro. E, com ela, vieram músicos europeus, entre os quais ao menos dois castrati. Um dos nomes mais documentados é o de Francesco Morandi, contratado em 1811 para atuar como cantor da Capela de Dom João VI.

Registros no Arquivo Nacional e pesquisas da Escola de Música da UFRJ confirmam a presença desses artistas na corte tropical. Suas vozes eram utilizadas em celebrações religiosas e eventos reservados à nobreza.

O compositor padre José Maurício Nunes Garcia, mestre da Capela Real, teria inclusive elaborado peças específicas para essa formação vocal, evidenciando a absorção local da estética musical europeia.

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O ocaso de uma era

Ao longo do século XIX, com o avanço das ideias iluministas e da crítica à moralidade da prática, os castrati começaram a desaparecer. A Itália baniu oficialmente a castração para fins artísticos em 1870.

A Igreja substituiu gradualmente essas vozes por corais de meninos e intérpretes femininas. A ópera adaptou-se ao uso de contratenores e mezzos.

O último grande nome dessa tradição foi Alessandro Moreschi, integrante do Coro da Capela Sistina, que gravou cilindros fonográficos no início do século XX. Apesar da qualidade técnica limitada das gravações, sua voz ainda oferece uma amostra rara da sonoridade outrora celebrada.

Um legado imortal

Apesar do sofrimento imposto, os castrati influenciaram decisivamente a técnica vocal e o estilo musical do período barroco e do classicismo.

Atualmente, papéis escritos para essas vozes são assumidos por contratenores, contraltos ou sopranos. Filmes como Farinelli (1994), documentários e estudos especializados mantêm viva a memória dessa tradição vocal.

No Brasil, sua atuação foi pontual, mas significativa. A presença de castrati na Capela Real do Rio de Janeiro demonstra como o país já estava inserido em circuitos culturais internacionais desde o período colonial. Suas vozes ressoaram em salões palacianos, marcando a história da música sacra nacional.

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Um eco de advertência

Nos dias atuais, o fenômeno dos castrati é revisitado sob a ótica dos direitos humanos, da ética e da história cultural. Representa um tempo em que o corpo infantil foi violentado para atender a um ideal artístico extremo. É uma narrativa que expõe os limites da beleza quando imposta por estruturas de poder.

Compreender essa trajetória é também reconhecer como a arte, mesmo em seus episódios mais sombrios, pode transformar dor em estética. E, acima de tudo, é um convite à reflexão sobre os limites entre o talento e o sacrifício, a glória e a exploração.

Anand Rao e Agnes Adusumilli
Editores
Cultura Alternativa