Publicado originalmente em 1975, Catatau, de Paulo Leminski, é um marco da literatura experimental brasileira.
Conhecido como um romance-ideia, a obra apresenta uma narrativa densa e fragmentada, protagonizada por uma versão delirante de René Descartes em pleno Brasil holandês.
Em um fluxo de consciência caótico e inovador, Leminski mistura neologismos, trocadilhos e referências filosóficas em um texto que desafia o leitor a todo momento.
O livro tem como cenário Recife, durante a ocupação holandesa, e brinca com a possibilidade fictícia de Descartes ter vindo ao Brasil para explorar as terras tropicais.
O filósofo, conhecido por sua busca pela razão e pelo método, vê sua lógica entrar em colapso diante da natureza exótica e das ervas alucinógenas consumidas durante a espera pelo polonês Krzysztof Arciszewski.
Esse encontro entre o racionalismo europeu e o caos tropical é a espinha dorsal do romance.
Paulo Leminski constrói uma crítica mordaz e poética à colonização, ao eurocentrismo e às formas tradicionais de pensar.
A obra é uma experiência estética única que mescla influências do Tropicalismo, Concretismo e Neobarroco, criando um texto denso e cheio de camadas.
Catatau
Cartésio no Brasil Holandês
A premissa de Catatau coloca René Descartes em uma situação absurda e surreal: perdido nos trópicos brasileiros, ele tenta aplicar seu método racionalista em um mundo que não se encaixa em sua lógica.
“Ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis…” Leminski começa o delírio de Descartes com uma mistura de erudição e deboche.
A chegada de Descartes ao Brasil é marcada pela percepção de um mundo onde a razão europeia perde seu sentido.
A exuberância tropical, os animais exóticos e a cultura indígena desafiam cada um de seus princípios filosóficos. “Bestas, feras entre flores festas circulam em jaula tripla…” é uma imagem que sintetiza a confusão do filósofo perante a natureza selvagem.
Essa desconstrução da razão cartesiana se intensifica à medida que o personagem se perde em devaneios.
A espera por Krzysztof Arciszewski, o oficial polonês que deveria ser seu guia, torna-se uma metáfora para a busca interminável de entendimento em meio ao caos.
Leminski brinca com a ideia de que não há explicação lógica possível para o Brasil do século XVII.
Catatau
O Delírio e a Linguagem
Um dos pontos mais inovadores de Catatau é sua linguagem. Leminski utiliza neologismos, aforismos e jogos de palavras para criar uma narrativa que desafia a linearidade.
“Chacoalham, cintila a água gota a gota, efêmeros chocam enxames…” é um exemplo da prosa poética que permeia o livro, evocando imagens vívidas e sensoriais.
A linguagem fragmentada reflete o estado mental de Descartes, que delira após consumir uma erva local. O uso de trocadilhos e construções nonsense cria uma atmosfera onírica e alucinante. “Não consigo entender o que digo, por mais que persigo…” revela a luta interna do personagem para manter a sanidade em meio ao delírio tropical.
Esse jogo linguístico não é apenas um exercício de estilo, mas uma crítica à imposição de uma lógica externa em contextos culturais diferentes.
Leminski questiona a validade de métodos e certezas importados da Europa para compreender a realidade brasileira, mostrando que o Brasil exige uma nova forma de pensamento.
Catatau
A Crítica à Colonização e à Razão
Catatau é, em essência, uma sátira da colonização e do racionalismo europeu. Ao trazer Descartes para o Brasil e fazê-lo delirar, Leminski expõe o fracasso da razão cartesiana diante da complexidade e diversidade do mundo tropical.
“Penso mas não compensa: a sibila me belisca, a pitonisa me hipnotiza…” demonstra o conflito do personagem com suas próprias limitações cognitivas.
O Brasil apresentado no livro é uma terra indomável, onde a natureza e a cultura local desafiam a lógica europeia. A figura do Gênio Maligno, recorrente no pensamento de Descartes, é materializada no livro como um monstro tropical que desestabiliza a razão do filósofo. “Este mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira…” sintetiza essa crítica.
Além de criticar o racionalismo, Leminski também questiona a ideia de uma verdade única e universal.
A obra sugere que cada cultura possui suas próprias formas de compreender o mundo, e que impor um método externo é um ato de violência intelectual.
Catatau celebra a diversidade de pensamentos e a riqueza do caos.
No link abaixo você lê Catatau em PDF;
Conclusão
Catatau é um desafio literário e filosófico. Paulo Leminski criou uma obra que rompe com os padrões narrativos tradicionais e oferece uma experiência de leitura única.
Ao colocar Descartes em um cenário tropical, o autor expõe as limitações do pensamento racionalista e celebra o caos como uma forma legítima de existência.
A linguagem experimental, os jogos de palavras e as referências filosóficas fazem do livro uma obra densa, mas recompensadora.
“Pensar muito dá sífilis…” é uma das muitas frases que revelam o humor ácido e a inteligência de Leminski. Catatau não é apenas um livro, mas uma provocação intelectual.
Para quem busca uma leitura que desafia, desconstrói e diverte, Catatau continua sendo uma obra essencial.
Um convite para abandonar certezas e se perder no delicioso labirinto de ideias que Leminski construiu. Como o próprio autor provoca: “Virem-se.”
Anand Rao
REDAÇÃO SITE CULTURA ALTERNATIVA