Carlos Dias Lopes

Pai e filho de motocicleta pelo País Basco – Por Carlos Dias Lopes

O verão europeu é uma celebração a céu aberto. Para abraçar mais intensamente este vibrante espaço festivo e absorvê-lo em todo seu esplendor, decidi percorrer de moto o litoral do País Basco. Na carona meu filho Caio, de 16 anos. Se pilotar motocicletas é a minha diversão favorita, a dele é o skate. A prancha vem conosco, atada ao bagageiro da Triumph Bonneville 900 cc. Junto a ela uma barraca para duas pessoas.

Nada do estresse de reservas em hotel, muito menos a adiposidade dos resorts.  O plano é parar e descansar quando nos for conveniente, num dos excelentes campings oferecidos ao longo da costa Atlântica. É para lá que acorrem os europeus descolados, em busca de um mar mais agitado, em contraponto ao tranquilo Mediterrâneo, do outro lado.

A ideia de viajar de moto “em família” não é original. Vem da leitura de “Zen e A Arte da Manutenção de Motocicletas”, de Robert M. Pirsig. Contudo, ela cabe como uma luva em nós, de espírito aventureiro e hábitos despojados.

Antes de entrar de punho esticado no roteiro de nossa viagem, vale uma explicação sobre as contingências geográficas e culturais desta região do planeta.

O regionalismo cultural é grandemente estimulado na Europa. Por isso, denominações seculares são mantidas em mapas, placas de trânsito, cartazes comerciais e no coração dos habitantes das distintas regiões. Neste imaginário oficial, mas sem fronteiras, fica localizado o País Basco, entre o Sudoeste francês e o Noroeste espanhol. Bayonne, ou Baiona em basco, é a capital desta região na França.

Foi de lá que partirmos. A cidade é um antigo porto corsário. Sobraram do período mais rico (século XVIII) belas residências às margens dos rios que cortam a cidade e o casario do centro, cujas ruas estreitas são fechadas ao tráfego. Em Bayonne pode-se começar o mergulho na cultura basca pelo Museu Basque, e continuar nas ruas. Pois não é raro escutar alguém falando o Euskara, a língua original. A animosidade dos corsários ficou no passado. Os bascos de hoje são relaxados e sorridentes. Na gastronomia, o jambom é onipresente. Nosso almoço será um grande sanduíche com espessas lascas desta iguaria, de sabor refinado.

Biarritz fica tão próxima, que as duas cidades quase se emendam. Ainda não dá para sentir que estamos em estrada aberta, pois o motor nem chega a esquentar e já estamos no centro histórico de um dos mais sofisticados balneários da Europa. Enquanto meu filho procura spots de skate, vou atrás de boas fotos. Fugindo do sol sob a fachada do cassino da Grande Plage, vislumbro à direita a magnífica falésia e o farol de Saint Martin. Na mesma direção está o lindo palácio Villa Eugénie, construído há 150 anos para a imperatriz do mesmo nome passar suas férias. Escurece por voltas das 22h e temos uma grata surpresa. A areia da praia é invadida por centenas de jovens, que se sentam à beira mar para conversar, ouvir música, namorar e dançar. Ficamos ali dois dias.

É hora de seguir viagem.  É pela estrada Departamental 817 que rodamos. A via agora tem ondulações e algum tráfego. Mas pilotar por aqui é bem mais fácil que no Brasil. Os motoristas respeitam sobretudo a distância lateral para os pequenos  veículos no momento de ultrapassá-los. Nunca nos sentimos inseguros. St Jean de Luz é o próximo balneário. Menor que Biarritz, mas também charmoso, com um bonito porto para pequenas embarcações em seu centro. No escritório de turismo, nos recomendam um camping localizado no alto de uma falésia, com grande vista para o Golfo de Gascogne. É lá que encontramos a goiana Mariuza, dona do Food Truck que mata a fome de famintos viajantes como nós.

O centro de St Jean de Luz é mais concentrado que Biarritz, com simpáticos prédios de arquitetura colombal, lembrando o enxaimel alemão.  Descobrimos ainda na desabitada praia de Erromardie, um cenário paradisíaco. Protegido por outra elevada falésia, ele só pode ser acessado a pé. Vale a pena! Em St Jean, meu filho finalmente consegue colocar sua prancha pra rodar. É no Skatepark 162, a melhor pista de skate em concreto do país basco. Seus 1.200 metros quadrados permitem ao Caio encaixar algumas de suas principais manobras, tais como “backside grab”, “tailslide” e “Ollie”.

Quando deixamos o local, ele está verdadeiramente satisfeito, pois o 162 é um spot famoso na França e ter rodado nele é algo a destacar na carreira de qualquer skatista.

Estamos quase na fronteira com a Espanha, mas antes de atingi-la, na manhã seguinte, passamos por Hendaye, a última praia francesa do País Basco. Ali mandam os surfistas. O principal meio de transporte é a Van, com pilhas de pranchas em bagageiros sobre o teto. Hendaye fica na Baía do Figuier, sem construções altas à beira mar, onde se destacam sobrados com varandas frontais dando para o Oceano.

Fronteiras abertas

Cruzamos o rio Bidasoa e estamos em território espanhol. Chegamos pela estrada GI 20. O país basco imaginário de alguma forma vira realidade na ausência de alfândega. A efervescente San Sebastian, ou Donostia (que vem a ser o mesmo em basco), nos recebe de braços abertos. Não há a necessidade de que remexamos nossos bolsos em busca de documentos como em outras fronteiras físicas do mundo.

Rodamos um pouco e logo encontramos nosso novo lar pelas próximas duas noites.  Enfim, estamos à vontade para aproveitar San Sebastian. A cidade de cerca de 200 mil habitantes é a capital da Província de Guipúscoa. Decidimos começar por passar uma tarde à beira da praia de Concha, cujas tranquilas águas verdejantes nos fazem relaxar rapidamente.  O cartão postal de San Sebastian é considerada uma das melhores praias urbanas do mundo. A beleza natural parece ter influência sobre os frequentadores. A elegância e a beleza das mulheres logo chamam nossa atenção. Echarpes, cangas e chapéus de tons sóbrios estão por todo lado. O top less também.

A Concha é limitada à direita pelo Monte Urgull, antigo forte militar, o qual contornamos para chegar à praia de Zurriola, “Zurri” para os locais. Voltamos a um território de surfistas e de jovens. Aqui,  ao contrário de Concha, as ondas são nervosas. Resisto a entrar na água, apesar dos apelos do Caio, pois a violência das grandes vagas me dá medo. Ficamos pela areia. Mais gente bonita e boa ambiência. Em vez de entrar na água, decidimos então escalar as enormes pedras quadradas dos molhes que protegem a praia do Rio Uruméia. A arquitetura da beira mar lembra um pouco Copacabana, no Rio de Janeiro, com prédios de tamanhos e estilos irregulares.

No dia seguinte começamos por explorar um pouco do antigo centro da cidade. Há um conjunto respeitável de casas e em estilo Belle Époque.  É o que eu enxergo. Meu filho vê outras coisas. O skatista tem um olhar diferente. Onde não vemos mais que equipamento urbano indispensável à nossa comodidade sedentária, ele vê obstáculos desafiadores. Assim, ao cruzarmos por um quarteirão “moderno” da cidade, Caio me pede que pare, pois “descobriu” um spot. Estaciono e me preparo para ser um expectador privilegiado do conjunto de manobras que ele passa a executar sobre um impecável piso de mármore branco. Ele se divertiu ali por mais de uma hora, período no qual tive de me arriscar perigosamente servindo de obstáculo humano a uma nova manobra, por ele criado e batizado de “Basca”. Como recompensa ganho um tempo para me sentar numa taverna e saborear um Pintxo, as tapas locais. Há de todas as misturas possíveis e a preço tão acessível que é possível experimentar várias delas.

Os dois dias em San Sebastian foram de encher os olhos, mas é hora de também encher o tanque da Triumph e seguir viagem. Não há bombeiros nos postos espanhóis. Aqui, o próprio condutor abastece e depois paga no caixa. Tudo na maior confiança!

Balenciaga e Goya

Este último trecho da viagem pelas pequenas rotas nos levará a Getaria e Zumaia. Para chegar às duas praias rodamos 35 quilômetros, dos quais 17 deles por uma adorável estradinha que serpenteia espremida entre o Atlântico e as falésias da região. Ali cruzamos por dezenas de motociclistas que como nós rodam em baixa velocidade para apreciar melhor a beleza que a Baía de Biscaya esconde atrás de cada curva.

Getaria e Zumaia são bem diferentes de San Sebastian. Trata-se de duas pequenas vilas de pescadores, encravadas em elevações à beira do Atlântico. Têm disputados restaurantes de frutos do mar e são muito procurados por famílias em busca de sossego nos finais de semana. Getaria, de apenas 2.500 habitantes é onde nasceu Balenciaga, mestre da alta costura espanhola. Há um museu dedicado a ele na vila. Em Zumaia, predomina a enorme catedral de São Pedro, um notável exemplar da arquitetura gótica basca. Na cidade vale apena visitar o museu Zuloaga, o qual exibe obras de Goya, El Greco e Rivera.

Fechamos aqui nossa visita ao Pays Basco. Arrumamos as mochilas, atamos barraca e skate ao bagageiro da motocicleta e é hora de uma longa viagem pela GI 20 de volta à França. Ela é de alta velocidade e cheia de curvas. Como é a primeira vez que rodo neste trecho, não passo dos 100 kms por hora numa motocicleta que poderia me levar facilmente aos 150 kms. Afinal, trago na carona meu bem mais precioso.

Depois de rodar centenas de quilômetros eu e meu filho voltamos diferentes deste deslocamento no tempo e no espaço. Além da memorável riqueza natural, cultural e humana do País Basco, trazemos conosco inesquecíveis momentos da intensa relação que partilhamos ao longo dos seis dias de estrada. Toda nova viagem para fora acaba provocando também uma investida rumo ao nosso íntimo. Ficamos contentes de ter um ao outro como companhia nesta jornada para dentro de nós mesmos.

Carlos Dias Lopes

Jornalista