Picasso sob a embriaguez criativa do vinho
Em Bordeaux, margem atlântica da França, o viajante tem o privilégio de poder apreciar até o mês de agosto a imperdível mostra ‘’Picasso, a efervescência das formas’’, no espaço cultural ‘’Cité du Vin’’.
Privilégio, pois, trata-se de uma inédita seleção de 80 obras do artista espanhol que têm como fio condutor temático uma das bebidas mais apreciadas no mundo, o vinho.
Jamais outra mostra de arte juntou nem juntará o grande mestre e a evocativa bebida. Dois motivos inatacáveis para visita-la neste verão europeu.
Pablo Picasso não exagerava limites com a bebida, foi um fervoroso católico até a juventude e um comunista engajado na vida adulta.
De tudo isso ficamos sabendo um pouco ao visitar a exposição, uma vez que o vinho está presente em todas as fases da carreira do artista, ao lado de suas escolhas estéticas, predileções metafísicas e tendências políticas.
O percurso de ‘’Picasso, a efervescência das formas’’ se divide em sete etapas. E pode ser visitado em aproximadamente uma hora e meia.
Começa com o Picasso Católico, que fazia retratações da Santa Ceia ressaltando a inevitável associação do vinho com o sangue de Cristo, fase em que a bebida aparece nas obras da mostra em seu caráter mais sagrado.
Do Período azul do artista (1899-1905), a exposição retém suas pinturas de cafés e cabarés onde explode a vida boêmia e artística do início do século XX, com a bebida aparecendo como componente trivial dos embriagantes cenários.
A partir de 1906, quando Picasso se lança em uma redefinição de códigos figurativos que vai dar no Cubismo, a bebida favorita dos franceses acompanha (assim como a cerveja e o rum) esta revolução estética. Formas de copos, taças e garrafas chegam aos nossos olhos metamorfoseados pelo traço inovador do mestre.
A quarta parte da exposição tem o nome de ‘’Encontro dos poetas’’, remetendo à instalação do atelier de Picasso em Montmartre, bairro boêmio de Paris. O movimento atrai geograficamente outros artistas e provoca uma embriaguez criativa comunitária, onde o vinho tem papel importante, refletido nas pinturas do período.
Nos anos 30, o pintor se volta para a mitologia antiga como fonte de inspiração. É o tempo em que faunos, minotauros, criaturas fálicas e, evidentemente, Bacos, invadem suas telas, em cenas em que o vinho irriga fartamente farras e bacanais.
Na sexta etapa, o visitante tem acesso às criações em cerâmica e escultura, com pratos, travessas, ânforas e garrafas que recriam o vocabulário do vinho e da comunhão à mesa.
Por fim, a sétima parte da exposição, abrangendo os anos de 1966 a 1973 (quando o artista nos deixa) é um retorno conceitual à infância, fase de embriaguez natural do ser humano pela vida.
Nesse período, Picasso enfrenta a morte próxima celebrando as forças da vida e tomando o vinho por sua metáfora.
A mostra da ‘’Cité du Vin’’ conta com quadros, esculturas, cerâmicas, desenhos e filmes nos quais se pode ver o artista em plena atividade, diante das lentes do diretor francês Henri-George Clauzet.
São obras egressas de museus franceses e espanhóis e de coleções particulares de todo o mundo reunidas a fim de que o visitante possa testemunhar a variedade de evocações formais e simbólicas do vinho e do álcool no trabalho de Picasso.
Como passe-par-tout da exposição, às vezes sútil noutras insidiosa, a bebida é inédito elemento a ressaltar a inesgotável criatividade de um artista fora de série.
Carlos Dias Lopes