“A Filha do Pai” de Hissa de Urkiola

Teatro no Forte de Copacabana: Sucesso em muitas camadas.

A auto ficção teatral “A Filha do Pai” de Hissa de Urkiola aborda vários temas, como a idealização da adoção de uma criança, a rivalidade entre irmãos, o interesse pela herança e sobretudo a trajetória de uma “filhinha de papai”, que se vê cuidando do pai, como se fosse seu filho.


Carlos Dias Lopes é jornalista, escreve sobre Artes para o Portal Cultura Alternativa.


Geralmente nos trabalhos autorais, os autores costumam colocar seu lado positivo, neste caso a autora e atriz Hissa de Urkiola coloca em cena sua fragilidade, com uma entrega contundente. A peca é teoricamente um monologo, mas a gente vê em cena o pai, o irmão, a amiga, o tio, a prima e até o agente de telemarketing.

Eu que sou fã do teatro tradicional, vi a peca no palco na estreia,  com uma tela translucida no cenário, muito bem utilizada por sinal, que representava outro cômodo da casa, um corredor de hospital e o mar. As apresentações acontecem de maneira alternada no teatro e no palco ao ar livre, sempre gratuitas.

A segunda vez que assisti a “Filha do Pai’ foi no palco ao ar livre ao lado da Confeitaria Colombo. Notei um microfone discreto de lapela, essencial para a apresentação ao ar livre, praticamente na beira mar. O tecido translucido da parte de cima da tela havia sido retirado, por questões obvias, pois o vento com seus caprichos poderia derrubar a estrutura a qualquer momento. Então ficou só o tecido de baixo e o céu, com sua aquarela de cores mágicas do por de sol, um cenário natural deslumbrante.

Num primeiro momento achei que eu não ia gostar dessa modernidade e despojamento, pensei que poderiam prejudicar a minha concentração.  Além do vai e vem dos visitantes do Forte, por trás das cadeiras do publico. Alguns certamente nunca foram ao teatro, um publico ocasional e não menos interessante. Mas a peça me encantou de novo e vi mais camadas de reflexões profundas em meio aos momentos cômicos, permeados pelos momentos musicais.

“A Filha do Pai” de Hissa de Urkiola

Hissa interpreta em cena uma Aria da Opera Carmen de Bizet, em outro momento dança um frevo, em outro toca violino. O Leitmotiv é uma melodia dos incas, certamente transmitida oralmente, pois até nossos dias não foi identificada escrita no Império Inca.

Dentre as várias camadas temos a idealização da adoção de uma criança fisicamente igual à ela, sabemos que a realidade brasileira é outra.  Os dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento de 25 de mai. de 2024. apontam que há mais de 46 mil pretendentes cadastrados em todo país e 3.800 crianças e adolescentes esperam por um lar.

No entanto, existe um desequilíbrio entre pessoas que querem adotar e as crianças e jovens que sonham em ser adotados. Hissa me concedeu uma rápida entrevista na qual relatou que já se cadastrou duas vezes para adotar uma criança, A primeira vez foi em São Paulo e a segunda vez foi no Rio de Janeiro.

Passar por todo o processo, as entrevistas e reuniões, permitiram que ela entendesse a disparidade entre o desejo da maioria das famílias em adotar uma bebezinha branquinha e as crianças a espera de adoção, majoritariamente de raça negra ou parda, mais velhas e com irmãos.

Hissa relatou que desde 2013 de abril a novembro, graças às Leis de Incentivo, apresenta montagens teatrais no Forte de Copacabana e fora para instituições de cegos, surdos, escola publica da zona norte e crianças de comunidades.

“A Filha do Pai” de Hissa de Urkiola

O Forte de Copacabana se tornou uma espécie de centro cultural, com projetos parceiros de orquestra, dança, literatura, coral e choro. Toda a programação é sempre gratuita ao publico.    

O cuidado da equipe com as redes sociais, é sagaz, no instagram um depoimento de cada apresentação e no youtube os vídeos de cada um dos integrantes da equipe, substituem o programa convencional impresso. Tudo muito ágil, passando o recado em poucos segundos, sem programas ou flyers que vão parar no lixo. Essas informações estão no QR code do marcador de livros, único material impresso.

Nos vídeos da equipe temos a fala do diretor e co-idealizador Dionis Tavares, que conta que esse trabalho foi realizado praticamente online com ele morando em São Paulo e Hissa no Rio de Janeiro. A figurinista Bia Del Negro embasou seu trabalho numa paleta de cores que denotam a trajetória de evolução espiritual da personagem. A troca de figurinos dá literalmente um colorido à peça.

O diretor optou por uma montagem sem recursos de som e luz externos, tudo se concentra na atriz, que aciona a trilha sonora com seu celular. Opção arriscada, mas vejo que a atriz se sai bem com os imprevistos que essa situação proporciona.

As transições entre os momentos presente e os momentos de flash back, constroem uma narrativa que flue com naturalidade. A personagem tem verticalidade em sua dramaturgia, sua trajetória de heroína revela a transformação em cena dessa mulher anti herói, quase uma Macunaíma contemporânea, onírica e fantástica.

“A Filha do Pai” de Hissa de Urkiola

O monólogo tem uma pitada de Sartre, em sua obra” Idade da Razão” quando ele escreve sobre o “jardim secreto”, no qual a personagem se acha maravilhosa e especial, sendo que na verdade os amigos a acham uma pessoa comum. A personagem de “A Filha do Pai” beira o ridículo quando se acha o máximo nas redes sociais, acha que está bombando e que todos a admiram.

A personagem do pai, está em cena o tempo todo, ele é o arquétipo do sábio, o Mestre Zen, apesar de apresentar uma falha; não se permitia tempo para se divertir. A vida dá um jeito de corrigir esse rumo, colocando-o travado numa cama.

A personagem do irmão apresenta o Guardião do limiar, muito usado na literatura, no cinema e no teatro, representando o obstáculo que o herói tem de lidar, e que o ajuda a amadurecer, lembrando a raiva do filme Divertidamente.

O que mais chama a atenção é desenvoltura da atriz, que é notória durante todo o espetáculo. O final é otimista, aponta que todas as histórias podem sem uma história de amor.

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Por Carlos Dias Lopes

Cultura Alternativa